Foi uma pré-estreia digna de Dona Fernanda – como Walter Salles, respeitosamente, se refere à grande
Joana era uma mulher preta e a decisão de fazê-la interpretar por Fernanda Montenegro teve o objetivo inicial de protegê-la. O repórter branco foi transformado em negro. Alan Rocha faz outro repórter em Ainda Estou Aqui. Nessa época de identitarismo, ninguém reclamou da mudança. Dona Fernanda é soberana no papel.
Assim como a metáfora da casa vazia fornece a chave para a interpretação do Brasil dos anos de chumbo por Walter Salles, em Ainda Estou Aqui, há outra ideia, ao mesmo tempo forte e delicada, que parece condensar tudo o que Andrucha Waddington está querendo dizer em Vitória. Mas, é claro, é preciso uma atriz como Dona Fernanda para chegar ao coração do público.

Nina possui um conjunto de xícaras que provavelmente herdou da patroa rica. Uma delas tem uma lasca, mas são relíquias para ela. Durante um tiroteio, Nina assusta, deixa cair a xícara, que se quebra. Ela recolhe os cacos, e os cola. A xícara parece perfeita, recuperada. Mas o café vaza. Nina não diz nada, apenas olha. É preciso uma Fernandona para expressar o não dito. A xícara pode ser aplicada ao que ocorre com Nina/Vitória, a trans, o moleque cooptado pelo tráfico, o jornalista que não pensa só na matéria, mas se sente comprometido com a segurança de sua personagem.
“Vivemos uma época libertária, embora lutando, lutando e lutando. A temática do convívio humano diante do pior que a vida lhe oferece é inarredável. Como é inarredável a luta pelo respeito humano. A luta pelo ser humano. A temática do filme é sobreviver, ainda mais difícil debaixo da Linha do Equador”, diz a atriz.
Dona Fernanda gosta de dizer que vive esquizofrenicamente duas vocações – “O ser atriz e eu mesma. O trabalho vocacionado resolve metade da sua vida. A outra metade tem que ser cuidada dentro do seu instinto de sobrevivência – que é onde está o seu caráter.”
Ela gosta de lembrar que, quando jovem, foi moldada na leitura de uma feminista como Simone de Beauvoir. O Segundo Sexo abriu-lhe portas da percepção humana, e da condição da mulher na sociedade. Personagens como a Dora de Central do Brasil e a Nina de Vitória provavelmente nunca ouviram falar de Simone de Beauvoir. Dona Fernanda, sim.
A filósofa feminista de alguma forma persiste nas personagens? “Para uma atriz (ou ator) o instrumento de criação é ela mesma: corpo e alma. Introjetar um personagem em si mesmo exige saber dele tudo que o organiza. E o ator só existe ao carnificá-lo. Ao colocar sua vivência no personagem.”
Ainda Estou Aqui fez história como primeiro filme brasileiro a vencer o Oscar. Foram décadas de tentativa, inclusive com Central do Brasil, também de Walter Salles, que candidatou Fernanda Montenegro ao prêmio de melhor atriz da Academia de Hollywood. Como foi ver a filha, a não menos grande Fernanda Torres, repetir seus passos, sendo indicada para o prêmio?
“O Oscar de Walter Salles tem uma simbologia imensa para o nosso cinema. E tem como porta-voz a extraordinária interpretação de Fernanda Torres, dando conta desse sonho realizado. É um momento já histórico para o Cinema Brasileiro. Deus tarda, mas não falha.”
Mesmo sendo mãe, Dona Fernanda consegue falar objetivamente sobre a filha. Escreveu uma carta linda, lembrando a emoção que tiveram, Fernando Torres e ela, ao ver a filha menina estrear no palco no Teatro Tablado, no Rio, lá se vão muitos anos.
“Aos 12 anos ela já exibia um completo domínio de palco. Diante do fenômeno, aos prantos, lembramos a frase do grande ator Procópio Ferreira, que, no final da interpretação da jovem e eterna atriz Bibi Ferreira, sua filha, agradecendo o estrondoso aplauso ao final do clássico Mirandonina, de (Carlo) Goldoni, lançou em voz alta – ‘Senhoras e senhores, está lançada a minha filial.’ Fernanda Torres, desde a infância, sempre ordenou a sua vocação de uma forma independente, real e sublime. São quase 50 anos de criatividade em diversas áreas da nossa cultura artística. Coube a ela atravessar a Linha do Equador, justamente durante o nosso carnaval dionisíaco para se transformar, para sempre, num referencial transcendente de brasilidade.”
Para concluir, o que Dona Fernanda diria para motivar o público a ver Vitória? “É um documento só daquela época em que se passa a história dessa mulher extraordinária, Joana da Paz? Não! Nosso País continua caminhando para o pior na área da sobrevivência humana. O filme é um protesto. Vejam Vitória”, conclui.