O Papel de Parede Amarelo, conto da escritora estadunidense Charlotte Perkins Gilman (1860-1935), é considerado um farol da literatura feminista. Publicada em 1892, a história joga luz sobre uma mulher em crise emocional confinada pelo marido para se esquecer dos fantasmas que rondam sua cabeça. A personagem circula pela fazenda, respira o ar puro, mas o quarto tem janelas gradeadas e o papel que forra as paredes acelera sua angústia. Ela passa a observar a decoração e, obcecada por decifrá-la, enxerga o símbolo de um padrão imposto para seu comportamento.
Padrões, rótulos, exemplos a seguir – ou não. A atriz Gabriela Duarte, de 50 anos, sabe bem o que representa a pressão em torno um modelo. A filha de Regina Duarte, a jovem privilegiada e popularizada em personagens relacionados aos da mãe, a voz meiga e o belo rosto comparados há pelo menos 35 anos. A mãe, a mãe, mãe. A identidade de Gabriela é outra. O público, porém, reluta ou não quer separá-las. “Fico impressionada que saí daquela barriga há 50 anos e ainda preciso provar que tenho o meu próprio CPF”, comenta. “Todo mundo tende a achar que somos a mesma pessoa, temos posturas iguais e parece impossível pensarmos de jeitos diferentes.”
Com o monólogo O Papel de Parede Amarelo e Eu, inspirado na obra de Perkins Gilman, Gabriela ensaia mais uma emancipação da figura materna. Se, na psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939) pregava a importância de “matar o pai”, Gabriela, depois de décadas de terapia, entendeu que, em seu caso, nada disto é possível ou necessário. É preciso estabelecer as diferenças, tocar o seu barco e “chegar diferente até a próxima encarnação”.
Sob a direção de Alessandra Maestrini e Denise Stoklos, o solo, que estreia nesta sexta, 28, no Teatro Estúdio, é um processo de radicalização. Não há uma adaptação ou uma dramaturgia. O conto original é preservado, e a peça ganhou forma através das partituras físicas para, depois, ser trabalhada a palavra. O corpo fala, prega Denise há mais de 40 anos, e, quando fala, traz uma dor que pode ser pontuada pelo humor e pelo absurdo, contribuição defendida por Alessandra. “Como diretoras, elas me desarmaram em um lugar que jamais imaginaria como artista”, confessa. “Se as pessoas vão gostar ou não, não é uma preocupação minha porque sempre alguém vai criticar e estou realizada.”
Levar ao palco O Papel de Parede Amarelo é uma ideia perseguida há mais de três anos. Outras diretoras passaram pelo projeto, uma dramaturgia foi descartada e o desânimo rondava a cada bola batida na trave. A atriz se perguntou “será que é para ser mesmo?” ou até “será que eu quero de verdade fazer isso?”. A crescente discussão feminista, entretanto, levou a intérprete a acreditar que era a hora de suas inquietações ganharem espaço longe do tom raivoso e militante que se tornou obviedade.
Nos últimos anos, a vida foi se transformando, e Gabriela, mais uma vez, sacou a maturidade para confiar nas mudanças. O casamento de duas décadas com o fotógrafo Jairo Goldflus acabou em 2022, os dois filhos, Manuela e Frederico, hoje com 18 e 13 anos respectivamente, exigiram um outro tipo de atenção e ela se viu freelancer em um mercado que não comporta mais longos contratos. “Quando precisamos andar com as próprias pernas, vem um custo, mas é a hora de entender que você está pronta para novas experiências”, diz. “É inegável o privilégio de permanecer mais perto dos meus filhos e ficar de olho nesta fase em que eles, adolescentes, não obedecem como na infância.”
Em um momento de feminismo fortalecido, a atriz se esforça para consolidar um diálogo com Manuela e Frederico que os coloquem em sintonia com os novos tempos, que possuem códigos diferentes dos de sua adolescência. “Vejo o quanto é fundamental deixar exemplos a meus filhos para que eles cresçam interessados em fazer parte destas mudanças”, afirma. “Sou de uma geração formada por modelos paternalistas, inclusive no trabalho, e eles vão encarar um mundo em que a autonomia não pode endurecê-los.”

A cabeça de Gabriela parece a mil; as teorias, dentro do possível, são postas em prática, mas o corpo tem dado os seus sinais. A chegada da menopausa fez com que ela não se reconhecesse mais e se assustasse com a falta de energia para atividades mínimas. “Eu fiquei devagar, alterou o meu estado de espírito e, volta e meia, preciso avisar para mim mesma que é só uma fase”, comenta, rindo. “Pelo menos é o que a Denise me garante nos ensaios.”
Na gangorra do climatério, Gabriela pode até se queixar de uma certa preguiça. A impaciência, porém, se traduz em uma série de atividades capaz de gerar movimento. Em outubro, ela lançou com a atriz Renata Castro Barbosa o podcast Pod, Amiga?, em que as duas reúnem convidados para falar de amizade, afetos e perrengues superados em dupla. “É algo que fala de coisas boas e tenta abrir a cabeça das pessoas quando a regra é a lacração”, justifica.
Pode até parecer precoce, porém, um passo recente e profundo foram as entrevistas e a escrita a quatro mãos com a jornalista Brunna Condini de uma biografia, ainda sem título, que espera publicar no segundo semestre. Histórias de vida e da carreira são reveladas sob o ponto de vista da identidade e da persistência em ser vista como mulher e artista autônomas. “Escrever esse livro foi um alívio e fez com que todas as comparações com minha mãe se resolvessem para mim”, confessa. “Tanto que parei de fazer terapia por dois anos e só voltei nos ensaios do espetáculo.”
O Papel de Parede Amarelo e Eu. Teatro Estúdio. Rua Conselheiro Nébias, 891, Campos Elíseos. Sexta e sábado, 20h; domingo, 18h. R$ 120,00. Até 1º de junho. A partir de sexta (28).