No primeiro parágrafo do seu principal romance, Conversa na Catedral, Mario Vargas Llosa faz o narrador se perguntar: “Em que momento o Peru tinha se fodido?”
De certa forma, e estendida a toda a América Latina, esta é a questão que orienta uma obra inteira, intensa e grandiosa. Para além do carma individual de cada um de nós, por que motivo um continente inteiro havia falhado de forma tão fragorosa em seu caminho para a civilização? Llosa,
Ao procurar seu cão, apreendido pela carrocinha durante um surto de raiva em Lima, reconhece no canil Ambrósio, um antigo braço direito do seu pai. Convida-o a beber uma cerveja e os dois se dirigem à Catedral do título – que, apesar do nome pomposo, não passa de uma espelunca de periferia, onde se bebe e se serve comida barata. O fluxo literário é, ele próprio, uma catedral da memória, assimétrica, cheia de volutas, surpresas, luz e sombra, esconderijos e armadilhas para o olhar. Pelas palavras do antigo empregado, Zavalita tenta, em vão, decifrar o passado e identificar o ponto em que ele, assim como seu país, havia saído dos eixos. Definitiva e para todo o sempre.
Conversa na Catedral é um dos maiores, mais ambiciosos e complexos romances da literatura hispano-americana. Construído como uma igreja barroca, a golpes de experimentalismo narrativo (mudanças constante do foco narrativo), memorialismo e ficção política, traz mais que uma história pessoal, a do seu ambivalente narrador. O Peru, com todas as suas contradições grandiosas, está contido ali, naquelas páginas.
Em sua obra ficcional, Llosa alterna o grande ao pequeno. Vai da imponência da Catedral a narrativas satíricas como Pantaleão e as Visitadoras (1973) e Tia Júlia e o Escrevinhador (1977). O primeiro conta a burocrática instalação de um bordel em área militar, em plena selva peruana. O segundo mostra um traço autobiográfico, já que a personagem principal é inspirada em Julia Urquidi, sua tia, com quem Vargas Llosa foi casado durante quase 10 anos (1955-1964). Mas outro personagem que se destaca é o escritor de radionovelas que não consegue disfarçar sua aversão aos argentinos em suas tramas. São hilários.
Alguns desses livros foram parar no cinema. Seu conterrâneo Francisco Lombardi adaptou A Cidade e os Cachorros e Pantaleão e as Visitadoras. Ambos muito bons, mas o primeiro superior ao segundo. O próprio Llosa dirigiu, com Jon Amiel, uma versão de Tia Júlia e o Escrevinhador. E há uma adaptação russa de A Cidade e os Cachorros chamada El Jaguar, que é o nome de um dos protagonistas do romance, o recruta rebelde. Seu conto Los Cachorros foi adaptado pelo mexicano Jorge Fons.
As convicções políticas em suas obras
Os temas sociais não deixaram de interessá-lo, em que pese a trajetória errática de suas convicções políticas. A leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha, inspirou Guerra no Fim do Mundo, 1981, sobre Antônio Conselheiro e seus desvalidos seguidores, e a trágica Guerra de Canudos, no interior da Bahia.
Mais tarde, em O Paraíso na Outra Esquina (2003), escreveu sobre a busca da liberdade por meio de dois personagens, a escritora e feminista Flora Tristán e seu neto, o pintor francês Paul Gauguin. Flora (1803-1844), arequipenha como ele, foi importante difusora das ideias socialistas e dos direitos das mulheres e trabalhadores. Ao trabalhar neste livro, Llosa já havia escrito um iluminador prefácio às memórias de Flora, Peregrinações de uma Pária (Fondo Editorial de la Universidad de San Marcos).
A esta altura, Llosa já havia mudado radicalmente sua orientação política, mas o passado de esquerda talvez o fizesse ver com nostalgia o socialismo utópico e libertário professado por Flora Tristán. O fato é que, em sua juventude e na primeira fase de sua literatura, Llosa fora o que se poderia chamar de “típico escritor latino-americano de esquerda”. Apoiara a Revolução Cubana de 1959 e a achava um farol válido para resgatar a América Latina do subdesenvolvimento e da exploração imperialista.
Com o tempo foi se desencantando com o autoritarismo do regime de Fidel Castro, em especial por perseguições a artistas e homossexuais. Outros eventos da época, como a Primavera de Praga esmagada pela União Soviética, o incompatibilizam com as ideias socialistas. Rompe com a revolução e passa de maneira progressiva ao campo oposto, transformando-se em ideólogo cada vez mais intransigente das doutrinas liberais. Vai de Castro a Margaret Thatcher, sem meios termos.
Suas convicções políticas o levam a tentar eleger-se presidente do Peru em 1990 por uma coalizão de centro-direita. No segundo turno perde para Alberto Fujimori, um choque inesperado pois havia vencido na primeira votação e era dado como eleito. Em 1993, decide deixar o país e obtém cidadania espanhola.
Da experiência traumática, Llosa tira um brilhante livro de memórias, Peixe na Água (1993), no qual alterna lembranças de infância e juventude a passagens pela campanha à presidência. Não deixa de ser uma reflexão extensa sobre a política, na qual nós, seus leitores de sempre, nos espantamos com a relativa ingenuidade do grande escritor quando tem de enfiar as mãos na massa da política real (Para Sartre, era outro o material em que se devia meter as mãos quem quisesse se dedicar à política).
Os textos não ficcionais de Vargas Llosa também são dignos de nota, pois raros são os escritores tão bem dotados na ficção como na expressão ensaística. A começar pelo denso García Márquez: História de um Deicídio (1971), sobre o monumento literário Cem Anos de Solidão, do seu colega colombiano.
Aliás, a amizade e depois inimizade entre Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez tornou-se um must do colunismo de fofocas literárias hispano-americano. Companheiros de mocidade, parceiros no chamado “boom da literatura latino-americana”, ambos Prêmio Nobel, foram apoiadores de primeira hora da Revolução Cubana. Se Gabo manteve-se fiel aos irmãos Castro até o fim, Llosa, como vimos, logo mudou de posição. Os antigos amigos e companheiros de armas (literárias) tornaram-se antípodas políticos. Além da tese do deicídio dedicado à obra-prima do amigo, Llosa escreveu um prefácio exemplar e maravilhoso a Cem Anos de Solidão, que pode ser encontrado na edição do livro da Real Academia Espanhola.
Mas o cruzado de direita com que o peruano abateu o colombiano em 1976 não se deveu a divergências ideológicas levadas ao extremo. Parece ter sido obra de um banal caso de ciúmes, pois Márquez teria se aproximado de Patricia, mulher de Llosa, na ausência do marido, para dois dedos de prosa ou algo mais. Entre latinos, mesmo geniais, isto podia ser perigoso, pelo menos era assim naquela época.
Um escritor de ofício
Em Cartas a um Jovem Novelista (1997), Llosa, fazendo a mimese de Cartas a um Jovem Poeta, clássico de Rainer Maria Rilke, tenta ensinar as manhas do ofício de romancista aos iniciantes. É obra de quem domina como poucos o artesanato a que se dedica. Presenciei, em Lima, uma exposição com objetos do autor, onde se destacavam volumes da biblioteca particular do escritor, rabiscados à exaustão. Em sua edição de Madame Bovary, por exemplo, ele chegava a esboçar uma verdadeira planta baixa da arquitetura ficcional de Gustave Flaubert para entender sua estrutura. É assim que se aprende: fazendo a anatomia das grandes obras e observando como funcionam.
Outro ensaio interessantíssimo de Llosa é A Tentação do Impossível, sobre a figura titânica do francês Victor Hugo. E há também o curioso A Civilização do Espetáculo (2012), em que Llosa é tão incisivo, lúcido e veemente sobre os males produzidos pelo capitalismo sobre a cultura e as artes que pensaríamos tratar-se de obra saída da pena de um escritor de esquerda, disposto a derrubar um sistema econômico que detesta. Contradição: dessa matéria são feitos os homens, mesmo os gênios.