Um alarme toca na sala de controle da Central Nuclear de Ventana, na Califórnia. Um indicador do painel aponta excesso de água no reator, que está transbordando. Para tentar resolver isso, o gerente da usina fecha as válvulas de entrada de água.
Mas, na verdade, o ponteiro daquele bendito indicador estava emperrado, com defeito – e não havia excesso de água no reator. Pelo contrário. Ao fechar a “torneira”, o gerente colocou a usina em situação perigosa. Sem um fluxo abundante de água para resfriar o reator, ele começa a esquentar demais, e aí…
Essa é a cena de abertura do filme A Síndrome da China, que chegou aos cinemas americanos no dia 16 de março de 1979. Estreou em mais de 500 salas, e atraiu um bom público: no primeiro final de semana, faturou US$ 20 milhões (em valores atualizados). Então imagine o pânico da sociedade americana em 28 de março, menos de duas semanas depois, quando algo parecido aconteceu na vida real.
O TMI-2, segundo reator da usina de Three Mile Island, na Pensilvânia, superaqueceu até entrar na pior condição possível: o derretimento do núcleo. Quando isso acontece, o combustível nuclear (no caso de Three Mile Island e de quase todos os reatores comerciais, urânio) alcança temperaturas extremamente altas, de 2 mil a 4 mil graus centígrados.
Isso derrete o reator e forma uma espécie de lava radioativa chamada corium (da palavra core, “núcleo” em inglês). A massa de corium se espalha, com fogo e calor quase impossíveis de apagar, e incinera ou derrete tudo o que toca.
Puxada pela gravidade, começa a penetrar no solo, que fura sem o menor esforço. Então ocorreria a tal “síndrome da China” que dá título ao filme: de tão quente, o corium poderia chegar até o núcleo da Terra, atravessá-lo e sair do outro lado do planeta (daí a menção à China).
Na vida real, isso não aconteceria. Eventualmente, o material perderia calor e se solidificaria, ficando preso na crosta terrestre; mesmo se conseguisse chegar ao núcleo do planeta, seria retido lá, puxado pela força da gravidade. A síndrome da China é fantasia.
Mas o derretimento do núcleo, que ocorreu em Three Mile Island, é um problema real e gravíssimo: se não for contido rapidamente, pode levar à explosão do reator (exatamente o que viria a ocorrer em Chernobyl, sete anos mais tarde, e na usina de Fukushima, em 2011).
O acidente inutilizou o reator 2 de Three Mile Island. Mas o reator 1 (TMI-1) não foi afetado, e continuou funcionando. Ele operou normalmente até 2019, quando foi desligado por razões econômicas: a usina estava dando prejuízo.
Até que no final do ano passado a companhia americana Constellation Energy, operadora de Three Mile Island, anunciou um contrato com a Microsoft para reativar o reator 2. A empresa de Bill Gates irá comprar 100% da energia produzida por Three Mile Island, e usá-la para alimentar seus datacenters na região (na Pensilvânia, em Chicago, na Virgínia e em Ohio).
Isso tem um motivo: o avanço da inteligência artificial. É que a IA requer muito processamento de dados, e isso demanda muita energia. Quando você entra no ChatGPT (que roda em datacenters da Microsoft, dona de 49% da OpenAI) e faz uma pergunta, ele consome 2,9 watts/hora de eletricidade para gerar a resposta, estima (1) a International Energy Agency. Isso é dez vezes mais do que uma busca simples no Google, que não inclua IA.
Segundo a agência, a demanda global de energia pelos datacenters vai dobrar até 2026 – e poderá alcançar 1.050 terawatts-hora (TWh) por ano, no cenário mais intenso.
O consumo total de eletricidade no Brasil, somando todas as residências, comércios e indústrias (incluindo datacenters) é 532 TWh por ano (2). Ou seja: puxados pela IA, os datacenters espalhados pelo mundo poderão, sozinhos, gastar tanta energia quanto dois Brasis inteiros.
É por isso que as gigantes da tecnologia estão indo atrás de eletricidade. Amazon, Google e Meta assinaram um manifesto, liderado pela World Nuclear Association (grupo que reúne operadoras de usinas e fabricantes de reatores), propondo que a geração global desse tipo de energia seja triplicada até 2050.
A Amazon comprou, por US$ 650 milhões, um datacenter bem ao lado da usina nuclear de Susquehanna, na Pensilvânia. A Meta anunciou que pretende adquirir até 4 gigawatts de capacidade de geração nuclear – o equivalente a toda a produção de quatro reatores.
E o Google, assim como a Amazon, está financiando o desenvolvimento de um novo tipo de reator, que promete tornar a energia nuclear mais simples e barata [leia abaixo].
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As big techs têm se interessado pela energia nuclear porque ela não emite CO2 e gera eletricidade de modo constante (não depende das condições climáticas, como as energias solar, eólica e hidrelétrica).
Isso permite que essas empresas se tornem “neutras em carbono”, algo que todas elas já anunciaram que desejam fazer, e ao mesmo tempo tenham acesso a quantidades bem maiores de energia do que hoje.
A corrida pela IA conseguiu a proeza de ressuscitar a indústria nuclear, cuja reputação havia sido mortalmente abalada por alguns incidentes. Como o daquela madrugada de março de 1979.
A válvula e o turno
Um reator nuclear é como se fosse uma grande panela de pressão. A fissão (quebra dos átomos) do urânio gera calor, que é usado para ferver água: ela vira vapor, que movimenta uma turbina e gera eletricidade. Depois essa água passa por um condensador, volta ao estado líquido, e é fervida novamente.
O condensador tem um sistema de filtros que retiram os sais minerais da água (para evitar que eles corroam a tubulação do reator). No dia 27 de março de 1979, um dos filtros usados no reator 2 de Three Mile Island entupiu. Isso é normal, e existe um procedimento para resolver: injetar ar comprimido no filtro. Mas, daquela vez, não adiantou.
Então os técnicos da usina resolveram injetar ar na própria água da tubulação – para que a força do líquido limpasse o condensador. Deu certo. Só que um pouco desse líquido entrou onde não deveria: no sistema de controle das bombas hidráulicas, que alimentam o reator com água.
Horas depois, às 4h da madrugada do dia 28, as bombas pararam. O mecanismo de segurança do reator entrou em ação, e ele desligou automaticamente. Mas não totalmente.
Para desligar um reator nuclear, você (ou o computador que controla o sistema) introduz nele as chamadas “hastes de controle”: são varetas feitas de certos materiais, como boro, cádmio ou índio, que absorvem nêutrons.
Isso interrompe a fissão nuclear – porque não há mais nêutrons suficientes circulando dentro do reator para sustentá-la. Mas o urânio continua quente, emitindo bastante calor: em Three Mile Island, era como se o reator permanecesse ligado, só que agora a 6% da potência total.
Ou seja, ele continuava precisando de água. Então o computador da usina acionou um conjunto de bombas secundárias, mas havia um problema: parte delas estava fechada (haviam sido deixadas assim, por erro humano, após uma manutenção realizada dois dias antes). Os técnicos não perceberam.
Privado do seu fluxo normal de água, o reator começou a superaquecer. A pressão dentro dele aumentou, e o sistema da usina abriu automaticamente uma válvula para deixá-la escapar. Aí aconteceu outro problema: essa válvula deveria ter sido fechada após 15 segundos, mas, por uma falha elétrica, ela continuou aberta.
Novamente, os técnicos não notaram isso (eles se confundiram com o indicador correspondente no painel da usina). Então agora, além de receber pouca água, o reator estava perdendo vapor rápido demais. Ai, ai.
Às 6h da manhã houve uma troca de turno, e o pessoal que chegou para trabalhar encontrou uma situação terrível. O nível de água no sistema estava 120 mil litros abaixo do normal, e a parte de cima do reator estava descoberta, sem água.
Com isso, o combustível nuclear começou a derreter, liberando hidrogênio, um gás altamente inflamável. Para piorar, a tubulação do reator estourou, espalhando água contaminada pela usina.
Às 6h45, os alarmes de radioatividade soaram. Às 6h56, os técnicos declararam emergência – e o governo da Pensilvânia foi informado. Às 8h da manhã, quando um engenheiro ligou para a Nuclear Regulatory Commission (órgão federal que supervisiona as usinas nos EUA), metade de todo o urânio do reator já havia derretido.
Mas os operadores ainda não entendiam o que estava acontecendo. Eles só corrigiram o problema, abrindo e fechando as válvulas necessárias, às 11h da manhã – sete horas após o início do acidente. Felizmente, o reator não explodiu.
Houve vazamento de radiação (principalmente na forma de xenônio e criptônio, dois gases radioativos), mas ele foi pequeno. Dois milhões de pessoas que viviam na região receberam em média 1,4 milirem cada uma – menos do que a dose gerada num exame de raio X.
Os funcionários da usina receberam doses maiores, de até 100 milirems, mas ainda assim inofensivas (metade da chamada “radioatividade natural”, que recebemos dos raios cósmicos e do solo, durante um ano).
Apesar disso, o acidente de Three Mile Island gerou pânico e afetou seriamente a indústria nuclear. Nos anos seguintes, a construção de mais de 50 reatores foi cancelada nos EUA. Aí, em 1986, veio o desastre de Chernobyl – e os investimentos globais em energia nuclear despencaram. O setor só começou a reagir agora, com a demanda puxada pela inteligência artificial.
Mas, como construir uma usina demora muito tempo, a aposta está na religação de reatores desativados. A usina de Three Mile Island não é a única nessa situação. A central nuclear de Palisades, em Michigan, recebeu US$ 1,5 bilhão do governo dos EUA para ressuscitar seu reator, de 800 megawatts, que havia sido desativado em 2022.
Como ele ficou inoperante por menos tempo do que o de Three Mile Island, o religamento será mais rápido: a empresa americana Holtec, dona da usina, espera tê-la funcionando em outubro deste ano. Nos EUA, há 22 reatores nucleares em processo de desativação – vários dos quais poderiam, em tese, ser religados para abastecer o setor de tecnologia.

O processo não é simples. Além de realizar uma série de inspeções e reparos [veja infográfico acima], a operadora da usina precisa recontratar as pessoas que trabalhavam nela – ou submeter novos funcionários a um treinamento altamente específico.
Além disso, é preciso obter uma autorização de funcionamento, concedida pela Nuclear Regulatory Commission, que avalia milhares de detalhes da usina. Também não é tão fácil conseguir o combustível do reator, urânio enriquecido (que contenha pelo menos 4% de U-235, o isótopo adequado para a fissão nuclear).
O maior fornecedor global é a Rússia, que abastece usinas americanas e europeias (as sanções econômicas impostas ao país, devido à Guerra da Ucrânia, não proibiram a venda de combustível nuclear). Mesmo assim, o governo americano está oferecendo US$ 3,4 bilhões para empresas que estejam interessadas em enriquecer urânio nos EUA – e, com isso, possam reduzir a dependência externa do país.
Mas talvez o ponto mais crítico, no renascimento do setor nuclear, seja vencer a resistência da sociedade. A usina de Palisades já tem recebido críticas de grupos ambientalistas, que estão tentando bloquear na Justiça a reativação da usina.
Em Three Mile Island, um grupo de moradores locais formou uma ONG, a No TMI Restart, para lutar contra o religamento do reator 1.
Eles dizem que a usina já está muito velha, pois foi construída há 50 anos, e alegam que as características físicas da região tornariam difícil evacuar a população em caso de acidente. Procurada pela Super, a Microsoft não quis se manifestar (a Constellation não respondeu aos pedidos de entrevista).
O reator 2, que sofreu o acidente, está vazio e desligado. O urânio que sobrou dele foi retirado do local e está guardado no Idaho National Laboratory, do governo dos EUA. A área foi descontaminada, mas ainda é necessário fazer um acompanhamento. O problema só estará totalmente resolvido, com as autoridades concedendo ao TMI-2 o status técnico de “aposentado”, em 2052.
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A aposta do Google – e da Amazon
Empresas financiam o desenvolvimento de um novo tipo de reator, menor e mais versátil.
Um reator nuclear produz muita energia. Dependendo do tamanho, do modelo e da tecnologia empregada, ele pode gerar de 800 a 1.400 megawatts – o suficiente para abastecer, sozinho, de 1 milhão a 2 milhões de residências.
Eles são grandes, complexos e muito caros: a construção dos dois novos reatores da usina nuclear Vogtle, na Geórgia (EUA), custou assustadores US$ 36,8 bilhões. Isso (alta potência e alto custo) limita a disseminação da energia nuclear.
Mas os “pequenos reatores modulares” (SMRs, na sigla em inglês) prometem oferecer uma solução. Eles são menores, construídos com estruturas pré-fabricadas, e geram bem menos energia, de 20 a 300 megawatts.
Por isso são mais baratos e flexíveis, podendo alimentar cidades de médio porte, por exemplo. Ou gigantescos datacenters – o que atraiu o interesse das grandes empresas de tecnologia.
Em outubro de 2024 o Google assinou um contrato com a empresa Kairos Power, que está desenvolvendo SMRs. O objetivo do negócio, cujo valor não foi divulgado, é construir reatores modulares capazes de gerar 500 megawatts ao todo, até 2035.
Poucos dias depois a Amazon anunciou um acordo similar, firmado com um consórcio de empresas elétricas chamado Energy Northwest, para desenvolver quatro reatores SMR no começo da próxima década, totalizando 320 megawatts.
Os SMRs ainda são uma tecnologia incipiente. Por enquanto, apenas quatro estão operacionais. Dois chineses, do modelo HTR-PM, que juntos estão gerando 210 megawatts, e dois reatores russos KLT-40S, que somados produzem 70 megawatts e foram montados no Akademik Lomonosov, um navio que funciona como usina nuclear flutuante, operada pela estatal Rosatom.
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Fontes (1) “Electricity 2024: Analysis and forecast to 2026”, International Energy Agency; (2) “Anuário Estatístico de Energia Elétrica 2024 – Ano base 2023”, Empresa de Pesquisa Energética (EPE).