Texto Rafael Battaglia | Edição Bruno Vaiano | Design e colagens Luana Pillmann
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roenlândia significa “terra verde”. Não faz muito sentido: na maior ilha do mundo, que tem 2 milhões de quilômetros quadrados (500 mil a mais que o estado do Amazonas), 80% do território é coberto por gelo. De onde vem esse nome, afinal?
Quem batizou a região foi Erik, o Vermelho, um explorador norueguês que atracou por lá em 985 d.C. Ele acreditava ter descoberto a ilha (que, na verdade, já recebia ondas migratórias de indígenas da América do Norte desde 2500 a.C.) e decidiu colonizá-la. O problema é que sua reputação não era das melhores.
Viking ruivo e barbudo (daí o “Vermelho”), Erik tinha sido expulso da Islândia por um assassinato. Anos antes, o mesmo havia acontecido com o seu pai, Thorvald, na Noruega. Para convencer as pessoas a embarcar com ele, o jeito foi mentir sobre o clima da região para torná-la mais atrativa. Erik morreu na “terra verde” em 1003 (hoje, a Groenlândia pertence à Dinamarca). Seu filho, Leif, continuou a explorar a área e chegou até o atual Canadá, onde montou breves assentamentos.
Erik e Leif são alguns dos expoentes da chamada Era Viking, que vai do século 8 ao 11. Numa época em que o comércio marítimo europeu começava a se reerguer depois da fase mais aguda do feudalismo medieval, os escandinavos dominaram o Atlântico. Eles saquearam inúmeras cidades, estabeleceram rotas comerciais com o Oriente Médio e, graças a Leif, chegaram à América quase 500 anos antes de Cristóvão Colombo.
Os escandinavos tinham à sua disposição barcos bem-construídos e gente a fim de navegar (o próprio termo “viking”, originalmente, designava quem se lançava ao mar, de modo pacífico ou para lutar). Mas não só. O principal combustível das expedições era o Gadus morhua, um peixe abundante no Atlântico Norte. Pouco gorduroso, ele era fácil de secar e estocar nos navios. Virava uma placa de proteína que os vikings quebravam e comiam como um salgadinho. Você conhece essa espécie: é o bacalhau.
Desde o século 9, os nórdicos já secavam bacalhau na Islândia e na Noruega. O excedente era vendido para o resto da Europa. Ao longo de mais de mil anos, esse peixe ajudou a movimentar a economia do Ocidente, esteve no centro de disputas geopolíticas e virou o queridinho dos almoços de Páscoa. Vamos entender essa história.
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O mar está para peixe
O Gadus morhua pertence à família dos gadídeos, a mesma do hadoque e do badejo. Ele pode chegar a 1,70 m de comprimento e pesar 55 kg. Existem outros Gadus (e até mesmo espécies de outros gêneros) comumente chamados de bacalhau. Mas o morhua, conhecido como bacalhau-do-atlântico, é o maior deles – e o mais importante para a economia pesqueira.
Acredita-se que o bacalhau tenha surgido há 120 milhões de anos, nas águas tropicais do Tétis, um oceano que ficava entre os antigos continentes Laurásia e Gondwana. Com o tempo, o peixe se estabeleceu no norte do globo (o morhua tem uma proteína anticongelante no sangue que lhe garante uma vida tranquila em águas geladas).
O bacalhau não costuma viver além dos 150 metros de profundidade. Ele se alimenta de crustáceos, peixes menores e até dos próprios filhotes. É fácil de pescar: ele não tem músculos suficientes para lutar contra a rede, é possível encontrá-lo próximo à costa e, graças ao seu apetite voraz, é atraído por iscas simples de chumbo.
Os vikings aproveitavam todas as partes do bacalhau: cabeça, língua, fígado e até as bexigas natatórias. Mas eles ainda não usavam sal – um produto caro para os nórdicos, que não tinham jazidas e precisavam importá-lo. O processo de cura do peixe, na verdade, começou com os bascos do norte da Espanha, que já faziam o mesmo com carne de baleia.
“Bacalhau” pode ter vindo do latim baculum, que significa “bastão” – provável referência ao aspecto do peixe quando seco.
A salga, aliada à secagem, amplificou as qualidades do bacalhau (sem passar por essa técnica, ele não solta lascas). “O bacalhau não apenas durava mais que os outros peixes salgados mas tinha também um sabor mais agradável”, escreve Mark Kurlansky no livro Bacalhau: a história do peixe que mudou o mundo. “Para a população pobre que não podia comprar peixe fresco, ele era um alimento barato e de alto valor nutritivo.”
Naquela época, pescados eram muito consumidos pelos cristãos. A Igreja Católica proibia carne vermelha não apenas às sextas (o dia da semana em que Jesus teria morrido), mas também às quartas, sábados, na Quaresma e em outras datas sagradas. Somando tudo, os católicos passavam quase metade do ano apenas comendo peixe. O mais comum era o arenque, mas o bacalhau conquistou o paladar. O morhua chegou a representar 60% do consumo de peixe na Europa.
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Os bascos fizeram fortuna e dominaram o mercado. Escandinavos e outros povos que passaram a explorar o peixe comercialmente não conseguiam descobrir onde aquela turma ibérica arranjava bacalhau de boa qualidade – a espécie, afinal, não vive nos mares espanhóis. O segredo só veio à tona no final do século 15, graças a uma disputa comercial.
Quem ditava as regras do comércio marítimo no norte da Europa era a Liga Hanseática, que nasceu no século 13 no norte da atual Alemanha e se estendeu para cidades em todo o Mar Báltico. Era uma associação de comerciantes que organizava o vaivém de navios, construía faróis e canais e lutava contra piratas. Também detinha o monopólio de produtos como sal, cobre, lã e alguns peixes.
Os hanseáticos desejavam controlar a venda de bacalhau – e isso incomodou os ingleses, que na época pescavam morhua na Islândia. Para fugir do raio de influência da liga, a Inglaterra organizou expedições ao oeste. Em 1497, o explorador John Cabot retornou com a solução: ele havia encontrado enormes quantidades de bacalhau na costa leste do Canadá.
Ele só não chegou primeiro: calhou que a região, batizada de Newfoundland (“Terra Nova”, em português), era justamente onde os bascos pescavam na surdina. Na Terra Nova, havia peixe – muito peixe. Cabot dizia ser possível pescar bacalhau com uma cesta no convés do barco. A Inglaterra deu início a expedições para a área, construiu portos e logo virou a principal fornecedora de bacalhau da Europa.
Alguns dos pescadores dessa época rumaram para o sul da Terra Nova, naquela pontinha dos EUA que ficaria conhecida como Nova Inglaterra. A oferta de peixes era grande, e o inverno era mais ameno do que o canadense. Foi por essas razões que, a partir do século 17, puritanos ingleses que desejavam se afastar da Igreja Anglicana também migraram para lá.
A pesca foi o motor da Nova Inglaterra. O fluxo de navios incentivava o comércio local. Mais no interior, os agricultores usavam restos de morhua como fertilizante. O bacalhau era símbolo do desenvolvimento: em Boston, havia uma estátuta do peixe folheada a ouro no teto da prefeitura.
Com o tempo, a Nova Inglaterra ganhou autonomia e passou a fazer os próprios negócios. O bacalhau de pior qualidade, rejeitado pelos europeus, virou alimento dos trabalhadores das lavouras de cana-de-açúcar das colônias na América Central. O peixe também era moeda de troca no comércio de escravizados. Por isso, o bacalhau é consumido até hoje em alguns países da África e do Caribe (na Jamaica, um café da manhã tradicional é bacalhau refogado com ackee, fruta símbolo do país).
Os EUA se tornaram independentes em 1776; o Canadá, em 1867. Os dois países assumiram o controle das suas regiões costeiras numa época em que a pesca se modernizou. Vieram os navios a vapor e técnicas que permitiram o congelamento dos peixes ainda a bordo. A produção bateu recordes, mas a um custo alto: no final do século 20, o bacalhau da América do Norte praticamente acabou.
Em 1992, o volume de bacalhau no litoral da Terra Nova chegou a 1% do normal. O Canadá interrompeu a pesca por dois anos, para que a população do peixe se recompusesse. A pausa, porém, se estendeu – e forçou 40 mil trabalhadores a entrar num programa de assistência do governo. Cidades inteiras foram afetadas. Hoje, ainda é possível pescar por lá, mas em pequenas quantidades. É provável que a abundância do peixe jamais volte a ser o que era.
O colapso abriu espaço para outros produtores. Hoje, das 827 mil toneladas de bacalhau pescado em 2024, 80% vieram de Noruega, Rússia e Islândia. Na média dos últimos anos, os noruegueses levam o pódio. Fomos até lá entender como esse mercado funciona.
Klippfisk
“Eis uma visão comum da nossa cidade no século 19: dezenas de navios espanhóis atracados na costa esperando pelo bacalhau secar na praia”, disse Ane Havnegjerde, guia do Museu da Pesca de Ålesund, município na costa sudoeste da Noruega responsável por mais de 90% do bacalhau do país.
A técnica de cura do bacalhau chegou à Noruega no final do século 17. O peixe era limpo, aberto e salgado nas praias rochosas, onde passava dias secando. Não à toa, os noruegueses chamam o bacalhau já salgado e seco de klippfisk, “peixe da pedra”.
No século 19, um acordo comercial aumentou o fluxo de espanhóis em Ålesund. Em troca do peixe, eles vendiam vinho, tabaco e outros produtos. Também deixavam terra, que era usada para fazer peso no barco na viagem de ida, e depois descartada para abrir espaço para o peixe. “A terra era usada em praças e cemitérios. De vez em quando, flores nativas da Espanha cresciam aqui”, diz Ane.
Salgar e secar bacalhau era difícil. Os trabalhadores (em sua maioria, mulheres) tinham de recolher o peixe todas as noites para ele não “dormir” ao relento, e protegê-lo da chuva e do excesso de sol. A demanda por mão de obra fez a cidade atingir 12 mil habitantes no começo do século 20. Hoje, são 67 mil.
Todo o bacalhau produzido era exportado. Os noruegueses nunca tiveram o costume de consumi-lo – como o morhua era valioso, eles se alimentavam de espécies mais baratas. Além da carne, outro produto de Ålesund era o óleo de fígado de bacalhau. As extrações mais puras viravam cosméticos e suplementos alimentares (até hoje, você encontra cápsulas de óleo em qualquer lugar da Noruega). O resto virava combustível ou impermeabilizante de roupas.
A pesca do bacalhau acontece o ano inteiro, mas a temporada principal é de janeiro a abril. Barcos pequenos podem pegar até 600 quilos de peixe sem precisar prestar contas ao governo. A partir daí, é preciso entrar no sistema de cotas de pesca – um limite que o país estabelece ano a ano para garantir que a população de bacalhau se mantenha estável.
Em águas internacionais, um consórcio de cientistas dos países produtores de bacalhau também determina cotas. Desde 2022, com a Guerra da Ucrânia, a Noruega cortou relações econômicas com a Rússia – mesmo assim, a colaboração para monitorar as concentrações de peixe permanece.

A maior parte do bacalhau vem das traineiras, barcos com grandes redes de pesca. Em Ålesund, entrei em uma com capacidade para mil toneladas de peixe e uma tripulação de 22 pessoas. A rede do navio tem 300 metros de comprimento e suporta de 10 a 15 toneladas a cada arrasto no mar. Na sala do capitão (que mais parece a da nave Enterprise, de Jornada nas Estrelas) Um radar identifica os cardumes de bacalhau e qual o tamanho dos peixes. É importante evitar bacalhaus pequenos – um sinal de que eles ainda são jovens e não se reproduziram.
O porão é uma fábrica molhada. Os peixes saem da rede e vão direto para trilhos de separação – outras espécies também vêm junto. Doze mil litros de água do mar são usados diariamente para manter tudo fresco. O bacalhau tem cabeça e língua retiradas e é congelado. O navio produz ainda óleo e farinha de peixe (esta última, usada em rações de animais).
Naquele dia, a tripulação se preparava para viajar até o Canadá, onde passariam semanas pescando. “O governo canadense é bastante criterioso e monta uma lista de espera com barcos interessados em pescar lá”, disse Astrid Strand, presidente da empresa responsável pela embarcação. “Acho que só vamos conseguir pescar de novo nessa mesma região daqui a 15 anos.”
Em terra firme, os peixes vão a leilão, onde produtores de bacalhau salgado e seco disputam os lotes. É nas mãos deles que o peixe é aberto e fica com aquele formato clássico, parecido com uma borboleta. Os operários recolhem as vísceras e também as ovas (uma fêmea pode botar até 9 milhões por vez), que são usadas para fazer “caviar de bacalhau” – um patê salgado consumido no café da manhã.
Em caixas que aguentam meia tonelada, a carne é disposta em camadas intercaladas com (muito) sal. O bacalhau, então, passa três meses curando. Depois vem a secagem, que hoje é feita em câmaras de ar quente tão barulhentas quanto uma turbina de avião. O processo dura até cinco dias, e varia de acordo com o comprador. Na República Dominicana, por exemplo, o costume é que o bacalhau tenha um aspecto mais fresco – então o peixe que vai para lá fica só um dia secando.
Em 2024, a Noruega exportou 135 mil toneladas de bacalhau, o que lhe rendeu R$ 6,4 bilhões (R$ 47,60 por quilo). Um quarto disso foi vendido a Portugal. Os portugueses são os maiores consumidores do pescado: 20% do bacalhau do mundo vai para lá.
Em manutenção
O consumo português começou durante as Grandes Navegações, na virada do século 15 para o século 16. O bacalhau, você já sabe, aguentava as longas viagens. Portugal chegou a pescar na Terra Nova, mas foi expulso da região por franceses e ingleses.
O país, então, passou a depender sobretudo da Inglaterra para suprir a demanda. Os preços subiram e, a partir do século 18, o ingrediente se restringiu à camada mais rica da sociedade. O bacalhau só se democratizou de vez na dieta portuguesa nos anos 1930, quando o ditador António Salazar fez campanha para que o peixe voltasse a ser símbolo do país e incentivou pescadores a ir ao Canadá e à Groenlândia.
No Brasil, a tradição vem do século 19, graças à imigração portuguesa. Em 1842, o primeiro navio norueguês carregado com bacalhau chegou ao Rio de Janeiro. Em troca, levaram café. É uma relação que se mantém até hoje. A Noruega é o segundo maior consumidor de café per capita no mundo – e a maior parte dos grãos sai daqui.
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Em 2024, o Brasil importou 22,3 mil toneladas de bacalhau: 75% disso veio da Noruega; 23% veio de Portugal – os portugueses compram o peixe norueguês (em geral fresco ou apenas salgado), finalizam o processo e o re-exportam. Uma pequena parte veio da China: eles exportam Gadus macrocephalus, o bacalhau-do-pacífico, que não se desfaz em lascas, é mais fibroso e mais barato.
As importações brasileiras cresceram 7% em relação a 2023. Mas não se engane. O cálculo considera outras espécies de peixes salgados e secos similares ao bacalhau (saiba mais no quadro abaixo). Quando consideramos apenas morhua, o volume diminuiu. E esse não é um caso isolado.

As exportações de bacalhau norueguês reduziram 32% desde 2021. Há menos peixes disponíveis devido às cotas de preservação mais rígidas. O aquecimento das águas, cortesia da crise climática, também dificulta a pesca, já que o bacalhau acaba migrando para áreas mais frias. O preço reflete toda essa situação: o valor do quilo aumentou 74% no mesmo período.
“As cotas de pesca são as menores desde os anos 1990”, explica Ørjan Olsen, responsável por mercados emergentes no Conselho Norueguês da Pesca, entidade que promove o consumo de pescados e frutos do mar do país escandinavo. “O maior objetivo agora é manter os consumidores que já existem.”
Ou seja: a indústria do bacalhau não está em expansão, mas em manutenção. Aos pescadores, resta pensar em alternativas. “No ano que vem, usaremos um barco com uma linha de produção só para camarões”, disse Strand. “Quando as cotas de bacalhau estão baixas, as do crustáceo, que são presas do peixe, crescem.”
Não tem jeito: as cotas são o único jeito de preservar a espécie – e evitar um desastre parecido com o do Canadá. Antes um peixe mais caro do que nenhum peixe. Um mundo sem bolinho de bacalhau seria um pouco mais triste.
O jornalista viajou a convite do Conselho Norueguês da Pesca.
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