Intitulada ‘Don’t Forget, We Come From the Tropics’, a mostra individual, em cartaz na Hispanic Society Museum & Library, reúne série inédita de trabalhos da consagrada artista carioca que traçam um diálogo entre história, arte e natureza obra de série ‘Pratos’; de Adriana Varejão
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Um dos maiores expoentes da arte contemporânea brasileira na atualidade em âmbito mundial, Adriana Varejão estreia no Hispanic Society Museum & Library, em Nova York, a mostra Don’t Forget, We Come From the Tropics. Em cartaz até 22 de junho, essa é sua primeira individual em um museu novaiorquino.
Nela, Adriana Varejão apresenta um novo conjunto de trabalhos: a serie Pratos, composta por peças de cerâmica em camadas que misturam mitologia amazônica com tradições cerâmicas globais, da porcelana da Dinastia Ming à cerâmica Marajoara. Essas obras foram inspiradas por sua participação na Bienal inaugural das Amazônias (2023) e refletem o envolvimento da artista carioca ao longo de sua trajetória com histórias coloniais, conhecimento indígena e a resiliência das culturas tropicais.
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No espaço externo do museu, Varejão também faz uma intervenção, trazendo uma enorme sucuri de fibra de vidro (anaconda amazônica) que envolve a estátua de bronze de El Cid de 1927 de Anna Hyatt Huntington, reimaginando um monumento do imperialismo através das lentes do poder da natureza e da força feminina.
Adriana Varejão
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Com mais duas mostras internacionais programadas para este ano, Adriana conversou com o editor de cultura e lifestyle Nô Mello sobre a nova exposição em solo norte-americano, sobre suas expectativas em torno da mostra, sobre suas experiências na Amazônia, e ainda adiantou um pouco do que está por vir. Confira a entrevista com a artista abaixo.
Nô Mello: Esta é sua primeira individual em um museu novaiorquino. Qual é a sua relação com a cidade e qual a sua expectativa?
Adriana Varejão: Nova York sempre foi um centro efervescente de cultura e arte, e para mim é uma honra fazer uma exposição individual em um museu da cidade. Já expus em outros museus nos Estados Unidos, mas esta mostra na Hispanic Society tem um significado especial, pois estabelece um diálogo entre minha obra e a coleção histórica da instituição, uma verdadeira jóia cultural. Além disso, fico feliz que seja um museu gratuito e situado no Washington Heights, um bairro vibrante com uma grande população latinoamericana. Minha expectativa é que o público mergulhe nesse universo de sobreposições entre o Barroco, elementos da floresta e a complexidade da relação entre arte e natureza. E também poder mostrar as obras ao lado das cerâmicas históricas do museu será muito especial. São peças que não costumam ser expostas ao público, ficavam no depósito do museu.
obra de série ‘Pratos’; de Adriana Varejão
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NM: A mostra apresenta a série ‘Pratos’. Como ela foi concebida e de que assuntos e ideias trata?
AV: A série Pratos vem sendo desenvolvida ao longo dos anos e, nesta exposição, ela ganha uma nova dimensão ao dialogar diretamente com elementos da Amazônia. Os novos pratos, inspirados nas ricas texturas das cerâmicas de Bordalo Pinheiro e Bernard Palissy, trazem representações exuberantes e nada óbvias da fauna e da flora amazônica, como a mucura, o guaraná com serpentes e sapos-flecha, botos-cor-de-rosa, aruás, a tartaruga mata-mata. Há um duplo jogo: na frente das obras estão os elementos da natureza e, no verso, faço referência a cerâmicas de diferentes tempos e geografias — da Iznik otomana, passando pela chinesa Ming, pela Valenciana espanhola até a Marajoara da Amazônia pré-colombiana. São gestos de sobreposição e mestiçagem, que criam uma cartografia de influências e trocas culturais. E o contraste entre os elementos orgânicos e os produzidos pelo homem reflete a tensão entre a natureza e o desejo humano de preservá-la ou dominá-la.
NM: Como sua experiência na Amazônia moldou essa mostra?
AV: A Amazônia é um território de forças e narrativas profundas. Estive lá algumas vezes, a primeira em 2003 quando participei de uma residência na comunidade yanomami em Watoriki, na região de Demini, que culminou em uma exposição na Fundação Cartier em Paris e depois no CCBB do Rio – Yanomami, o espírito da Floresta.
Quando fui convidada para participar da I Bienal das Amazônias, em 2023, apresentei uma obra feita para a exposição de 2003 e produzi uma obra inédita, Mucura, que trago agora para a Hispanic Society. A partir da Mucura, estendi a pesquisa sobre temas da Amazônia para criar os outros pratos desta série. A floresta não é apenas um bioma, mas um organismo de memórias, um espaço de cultura e cosmogonia. A exposição reflete essa vivência, trazendo figuras que habitam a mitologia amazônica. No Barroco, há essa ideia de tensão entre opostos — e a Amazônia também se insere nessa lógica: ela é potência e fragilidade, desejo e destruição, corpo e território.
obra de série ‘Pratos’; de Adriana Varejão
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NM: Que mensagens ou alertas você gostaria de passar para o público norte-americano neste momento a respeito da Amazonia e da ecologia?
AV: Eu não trabalho com mensagens diretas, mas com imagens que criam outras camadas de leitura. A Amazônia é comumente vista como um lugar de exotismo ou de perigo, e esses estereótipos ainda persistem. Mas o que me interessa é falar da floresta como um espaço de saberes, de subjetividades, de encruzilhadas históricas.
O que apresento são corpos de resistência — sejam eles humanos ou não. Parte dos animais que pinto nos pratos estão ameaçados de extinção, e é como se estivessem congelados num tempo pré-destruição. A obra convida à contemplação, mas também ao incômodo. Acho que o estranhamento é uma forma potente de consciência.
NM: Você também criou para a exposição uma enorme sucuri entrelaçada ao monumento de El Cid. Como a história do líder espanhol se conecta com a brasileira, e com a obra apresentada?
AV: O que me interessa é justamente a sobreposição das narrativas. O El Cid é um símbolo masculino de heroísmo e dominação. A sucuri, por outro lado, traz uma força mítica da floresta, é um elemento que desestabiliza essa figura de controle.
A serpente é um animal profundamente ligado à mitologia feminina e ao pensamento ameríndio. No imaginário ocidental, ela está associada ao perigo ou à sedução, mas, na Amazônia, a sucuri é um elo entre mundos. Ao enroscar-se no El Cid, ela tensiona essa história oficial, faz um gesto de deslocamento simbólico.
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NM: Além de apresentar seu trabalho autoral, você também fez a curadoria de uma seleção de cerâmicas históricas da coleção da Hispanic Society. Como foi essa experiência curatorial?
AV: Quando visitei pela primeira vez a Hispanic Society, o diretor Guillaume Kientz me conduziu pelos depósitos do fundo do museu. Encontramos diversos tesouros culturais: mapas antigos, desenhos, trajes e, claro, muitas cerâmicas. Fiquei muito impressionada ao me deparar com uma cerâmica valenciana que foi referência para o verso de um prato meu, que pintei anos atrás. Pensei que seria incrível poder expor os meus pratos ao lado dessas peças históricas.
A cerâmica é um material profundamente narrativo. Ela atravessa culturas e civilizações, mas sempre ocupou um lugar secundário na história da arte. O que me interessava nessa curadoria era aproximar os meus Pratos dessas peças, criando conexões formais e simbólicas. A relação entre arte e as as artes ditas decorativas é um eixo forte na minha pesquisa. O que define uma obra como “alta cultura” ou como “artesanato”, ou “arte decorativa”? Por que certas tradições são incorporadas ao cânone e outras são relegadas a um espaço periférico? São questões que me instigam.
NM: O nome da mostra é “Don’t Forget: We Come From the Tropics”, em referência à célebre frase de Maria Martins. De que modo você se conecta com Maria Martins e seu legado?
AV: Maria Martins foi uma artista transgressora, que explorou o desejo, a mitologia, o erotismo e o tropical de forma radical. Ela era uma mulher latino-americana produzindo sua arte no epicentro do surrealismo, mas trazia uma visão que não se encaixava nos moldes europeus.
Essa frase dela, “Don’t forget, I come from the tropics”, carrega um sentido de afirmação e deslocamento. O trópico é um espaço de excesso, de potência, mas também de violência. Minha obra sempre trabalhou com essa ambivalência — a sedução e a brutalidade do Barroco, a ferida e a beleza, o corpo e a história.
NM: Além da mostra em Nova York, você também inaugura exposições em Lisboa e Atenas. Elas dialogam entre si de alguma forma? Se sim, qual?
AV: Sim, acho que há uma relação entre elas. Lisboa e Atenas são cidades marcadas por legados de império, por camadas arqueológicas de história e por um passado que reverbera no presente. Minha obra lida com esses estratos temporais — a pintura, para mim, é um espaço de ruína e reconstrução.
Cada exposição traz um recorte específico, mas todas trabalham com essa ideia de mestiçagem cultural, de encontros e trocas, mas também confrontos entre civilizações. Meu trabalho sempre operou no campo das fusões, das sobreposições — seja entre o azulejo português e a pele, entre o sangue e a cerâmica, o corpo e a paisagem.
Hispanic Society Museum & Library: 3741 Broadway, Nova York; @hispanic_society
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Um dos maiores expoentes da arte contemporânea brasileira na atualidade em âmbito mundial, Adriana Varejão estreia no Hispanic Society Museum & Library, em Nova York, a mostra Don’t Forget, We Come From the Tropics. Em cartaz até 22 de junho, essa é sua primeira individual em um museu novaiorquino.
Nela, Adriana Varejão apresenta um novo conjunto de trabalhos: a serie Pratos, composta por peças de cerâmica em camadas que misturam mitologia amazônica com tradições cerâmicas globais, da porcelana da Dinastia Ming à cerâmica Marajoara. Essas obras foram inspiradas por sua participação na Bienal inaugural das Amazônias (2023) e refletem o envolvimento da artista carioca ao longo de sua trajetória com histórias coloniais, conhecimento indígena e a resiliência das culturas tropicais.
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No espaço externo do museu, Varejão também faz uma intervenção, trazendo uma enorme sucuri de fibra de vidro (anaconda amazônica) que envolve a estátua de bronze de El Cid de 1927 de Anna Hyatt Huntington, reimaginando um monumento do imperialismo através das lentes do poder da natureza e da força feminina.
Adriana Varejão
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Com mais duas mostras internacionais programadas para este ano, Adriana conversou com o editor de cultura e lifestyle Nô Mello sobre a nova exposição em solo norte-americano, sobre suas expectativas em torno da mostra, sobre suas experiências na Amazônia, e ainda adiantou um pouco do que está por vir. Confira a entrevista com a artista abaixo.
Nô Mello: Esta é sua primeira individual em um museu novaiorquino. Qual é a sua relação com a cidade e qual a sua expectativa?
Adriana Varejão: Nova York sempre foi um centro efervescente de cultura e arte, e para mim é uma honra fazer uma exposição individual em um museu da cidade. Já expus em outros museus nos Estados Unidos, mas esta mostra na Hispanic Society tem um significado especial, pois estabelece um diálogo entre minha obra e a coleção histórica da instituição, uma verdadeira jóia cultural. Além disso, fico feliz que seja um museu gratuito e situado no Washington Heights, um bairro vibrante com uma grande população latinoamericana. Minha expectativa é que o público mergulhe nesse universo de sobreposições entre o Barroco, elementos da floresta e a complexidade da relação entre arte e natureza. E também poder mostrar as obras ao lado das cerâmicas históricas do museu será muito especial. São peças que não costumam ser expostas ao público, ficavam no depósito do museu.
obra de série ‘Pratos’; de Adriana Varejão
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NM: A mostra apresenta a série ‘Pratos’. Como ela foi concebida e de que assuntos e ideias trata?
AV: A série Pratos vem sendo desenvolvida ao longo dos anos e, nesta exposição, ela ganha uma nova dimensão ao dialogar diretamente com elementos da Amazônia. Os novos pratos, inspirados nas ricas texturas das cerâmicas de Bordalo Pinheiro e Bernard Palissy, trazem representações exuberantes e nada óbvias da fauna e da flora amazônica, como a mucura, o guaraná com serpentes e sapos-flecha, botos-cor-de-rosa, aruás, a tartaruga mata-mata. Há um duplo jogo: na frente das obras estão os elementos da natureza e, no verso, faço referência a cerâmicas de diferentes tempos e geografias — da Iznik otomana, passando pela chinesa Ming, pela Valenciana espanhola até a Marajoara da Amazônia pré-colombiana. São gestos de sobreposição e mestiçagem, que criam uma cartografia de influências e trocas culturais. E o contraste entre os elementos orgânicos e os produzidos pelo homem reflete a tensão entre a natureza e o desejo humano de preservá-la ou dominá-la.
NM: Como sua experiência na Amazônia moldou essa mostra?
AV: A Amazônia é um território de forças e narrativas profundas. Estive lá algumas vezes, a primeira em 2003 quando participei de uma residência na comunidade yanomami em Watoriki, na região de Demini, que culminou em uma exposição na Fundação Cartier em Paris e depois no CCBB do Rio – Yanomami, o espírito da Floresta.
Quando fui convidada para participar da I Bienal das Amazônias, em 2023, apresentei uma obra feita para a exposição de 2003 e produzi uma obra inédita, Mucura, que trago agora para a Hispanic Society. A partir da Mucura, estendi a pesquisa sobre temas da Amazônia para criar os outros pratos desta série. A floresta não é apenas um bioma, mas um organismo de memórias, um espaço de cultura e cosmogonia. A exposição reflete essa vivência, trazendo figuras que habitam a mitologia amazônica. No Barroco, há essa ideia de tensão entre opostos — e a Amazônia também se insere nessa lógica: ela é potência e fragilidade, desejo e destruição, corpo e território.
obra de série ‘Pratos’; de Adriana Varejão
Divulgação
NM: Que mensagens ou alertas você gostaria de passar para o público norte-americano neste momento a respeito da Amazonia e da ecologia?
AV: Eu não trabalho com mensagens diretas, mas com imagens que criam outras camadas de leitura. A Amazônia é comumente vista como um lugar de exotismo ou de perigo, e esses estereótipos ainda persistem. Mas o que me interessa é falar da floresta como um espaço de saberes, de subjetividades, de encruzilhadas históricas.
O que apresento são corpos de resistência — sejam eles humanos ou não. Parte dos animais que pinto nos pratos estão ameaçados de extinção, e é como se estivessem congelados num tempo pré-destruição. A obra convida à contemplação, mas também ao incômodo. Acho que o estranhamento é uma forma potente de consciência.
NM: Você também criou para a exposição uma enorme sucuri entrelaçada ao monumento de El Cid. Como a história do líder espanhol se conecta com a brasileira, e com a obra apresentada?
AV: O que me interessa é justamente a sobreposição das narrativas. O El Cid é um símbolo masculino de heroísmo e dominação. A sucuri, por outro lado, traz uma força mítica da floresta, é um elemento que desestabiliza essa figura de controle.
A serpente é um animal profundamente ligado à mitologia feminina e ao pensamento ameríndio. No imaginário ocidental, ela está associada ao perigo ou à sedução, mas, na Amazônia, a sucuri é um elo entre mundos. Ao enroscar-se no El Cid, ela tensiona essa história oficial, faz um gesto de deslocamento simbólico.
Revistas Newsletter
NM: Além de apresentar seu trabalho autoral, você também fez a curadoria de uma seleção de cerâmicas históricas da coleção da Hispanic Society. Como foi essa experiência curatorial?
AV: Quando visitei pela primeira vez a Hispanic Society, o diretor Guillaume Kientz me conduziu pelos depósitos do fundo do museu. Encontramos diversos tesouros culturais: mapas antigos, desenhos, trajes e, claro, muitas cerâmicas. Fiquei muito impressionada ao me deparar com uma cerâmica valenciana que foi referência para o verso de um prato meu, que pintei anos atrás. Pensei que seria incrível poder expor os meus pratos ao lado dessas peças históricas.
A cerâmica é um material profundamente narrativo. Ela atravessa culturas e civilizações, mas sempre ocupou um lugar secundário na história da arte. O que me interessava nessa curadoria era aproximar os meus Pratos dessas peças, criando conexões formais e simbólicas. A relação entre arte e as as artes ditas decorativas é um eixo forte na minha pesquisa. O que define uma obra como “alta cultura” ou como “artesanato”, ou “arte decorativa”? Por que certas tradições são incorporadas ao cânone e outras são relegadas a um espaço periférico? São questões que me instigam.
NM: O nome da mostra é “Don’t Forget: We Come From the Tropics”, em referência à célebre frase de Maria Martins. De que modo você se conecta com Maria Martins e seu legado?
AV: Maria Martins foi uma artista transgressora, que explorou o desejo, a mitologia, o erotismo e o tropical de forma radical. Ela era uma mulher latino-americana produzindo sua arte no epicentro do surrealismo, mas trazia uma visão que não se encaixava nos moldes europeus.
Essa frase dela, “Don’t forget, I come from the tropics”, carrega um sentido de afirmação e deslocamento. O trópico é um espaço de excesso, de potência, mas também de violência. Minha obra sempre trabalhou com essa ambivalência — a sedução e a brutalidade do Barroco, a ferida e a beleza, o corpo e a história.
NM: Além da mostra em Nova York, você também inaugura exposições em Lisboa e Atenas. Elas dialogam entre si de alguma forma? Se sim, qual?
AV: Sim, acho que há uma relação entre elas. Lisboa e Atenas são cidades marcadas por legados de império, por camadas arqueológicas de história e por um passado que reverbera no presente. Minha obra lida com esses estratos temporais — a pintura, para mim, é um espaço de ruína e reconstrução.
Cada exposição traz um recorte específico, mas todas trabalham com essa ideia de mestiçagem cultural, de encontros e trocas, mas também confrontos entre civilizações. Meu trabalho sempre operou no campo das fusões, das sobreposições — seja entre o azulejo português e a pele, entre o sangue e a cerâmica, o corpo e a paisagem.
Hispanic Society Museum & Library: 3741 Broadway, Nova York; @hispanic_society