Quando Bob Dylan gritou os primeiros versos de Maggie’s Farm – ‘I ain’t gonna work on Maggie’s farm no more’ [‘Eu não vou mais trabalhar na fazenda da Maggie’, em tradução livre] – no Festival de Newport em 1965, a música popular nunca mais foi a mesma.
Profeta de uma nova era ou traidor de um movimento? Seis décadas depois, seguimos a discutir a famosa guinada do folk ao rock n’ roll feita pelo cantor de Blowin’ In The Wind naquela fatídica noite de julho que mudou a década de 60 ao quebrar barreiras entre os gêneros musicais e abrir caminho para novas gerações experimentarem distintas formas de expressão artística.
Mesmo com uma banda recém-reunida e desorganizada, o bardo de Minnesota arrebatou o público e os amigos puristas, sob aplausos e vaias, vestindo uma jaqueta preta de couro e empunhando uma guitarra, ao invés do violão. Ali, o trovador moderno, ícone da contracultura, ao entoar clássicos como Like a Rolling Stone, provou que representava a juventude e o futuro, enquanto as pessoas que o vaiaram estavam presas no passado.
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Em Dylan Elétrico, obra lançada originalmente em 2015 que acaba de ganhar publicação no Brasil, o escritor e músico norte-americano Elijah Wald desembaraçou e embaraçou as linhas que levaram àquele momento histórico sob três prismas: a ascensão do jovem poeta e compositor, os Festivais de Newport e a importância de Pete Seeger (1919-2014) naquele universo – sem esquecer de Woody Guthrie (1912-1967), é claro, o maior ídolo de Bob.
“Meu trabalho foi deixar as pessoas mais confusas”, revelou Wald em entrevista ao Estadão, por telefone. O autor de 66 anos, que teve acesso a gravações, filmagens e textos fundamentais do período, disse ter ficado muito contente com o fato do próprio Dylan ter escolhido seu livro para basear a recente cinebiografia Um Completo Desconhecido (2024), indicada ao Oscar 2025 em oito categorias e estrelada por Timothée Chalamet.
There’s a movie about me opening soon called A Complete Unknown (what a title!). Timothee Chalamet is starring in the lead role. Timmy’s a brilliant actor so I’m sure he’s going to be completely believable as me. Or a younger me. Or some other me. The film’s taken from Elijah…
— Bob Dylan (@bobdylan) December 4, 2024
No fim do ano passado, o astro fez uma rara postagem no X (antigo Twitter) para divulgar o longa-metragem e elogiou o trabalho de Elijah. “É uma releitura fantástica dos eventos do início dos anos 60 que levaram ao fiasco em Newport. Depois de assistir ao filme, leia o livro”, recomendou.
Nesta conversa, o biógrafo ainda analisou a vida amorosa do gênio ganhador do Nobel de Literatura, suas preferências políticas e como a invasão britânica dos Beatles e dos Rolling Stones o impactaram.
Primeiramente, quais foram seus maiores desafios para fazer o livro e como foi seu processo de pesquisa?
Honestamente, meu maior desafio foi que eu tive que fazer tudo muito rapidamente, porque eu queria que o livro estivesse pronto para o 50º aniversário do evento. Eu tive a ideia bastante tarde, então eu tinha apenas seis meses para fazer todo o projeto. A coisa mais difícil de encontrar eram as histórias das pessoas que estiveram lá na plateia, e que tinham escrito algo na época, mantido um diário ou escrito cartas. Encontrei algumas coisas, mas eu realmente queria entender o que as pessoas pensavam naquele momento, porque até mesmo um mês depois do ocorrido, muitas delas se lembravam de forma muito diferente.
O escopo histórico do livro é impressionante. Não é um livro sobre Bob Dylan, mas sim sobre uma era.
Sim, todo o meu trabalho como historiador de música é baseado na ideia de que o que faz as cenas musicais é o público, não os intérpretes. Se você está sempre olhando para o palco e não para o público, você não entende o que está acontecendo. Para este projeto em particular, a história sempre foi contada como se Dylan estivesse fazendo algo maravilhoso que as pessoas estúpidas na plateia não entendiam, e isso é simplesmente errado. As pessoas na plateia entendiam exatamente o que estava acontecendo. Muitas das pessoas que estavam descontentes entendiam que aquilo era o fim daquele mundo, e elas não estavam felizes com isso. E quando eu estava escrevendo o livro, senti que meu trabalho era deixar as pessoas mais confusas. Eu queria que as pessoas que lessem o livro entendessem bem o tempo de forma que elas não tivessem certeza de como se sentiriam a respeito.

Você já se encontrou com Bob Dylan? Ele elogiou seu livro pelas redes sociais…
Nunca o encontrei. Mas essa é a parte louca de tudo isso. Foi ideia dele que deveriam usar o livro como inspiração para o filme. Eu realmente não entendo como a mente dele funciona. Obviamente, estou contente.
Mas como foi o processo de negociação? Você alguma vez falou com o diretor James Mangold?
O gerente do Dylan me ligou e disse que eles queriam usar o livro como inspiração para um filme. Coloquei ele em contato com o meu agente, e nos pagaram um dinheiro. Esse foi todo o meu envolvimento.
Você fez um bom negócio?
Sim. Quero dizer, o que parece um bom negócio para um escritor, para as pessoas em Hollywood parece o que eles pagam por um almoço para o elenco por um dia. Mas para um escritor, foi um negócio muito bom.
Você gostou do filme?
Sim, gostei. Todo mundo que eu conheço daquele mundo, ou que esteve perto daquele mundo, esperava algo muito pior. Eles fizeram a música muito bem. Edward Norton estava incrível como Pete Seeger. Achei que Chalamet fez a música bem e não tentou fazer uma imitação do Dylan, o que me pareceu uma boa ideia. Eles a fizeram a personagem da Suze Rotolo um pouco mais chorona do que eu gostaria. Suze era minha amiga, ela era mais engraçada do que isso. E o filme avançou muito rapidamente. Eu odeio muitas cinebiografias musicais, mas eu gostei desta. Tiveram pequenas coisas que me incomodaram, mas no geral eu gostei.
Quando você reconta aquela noite em Newport, fica claro que a banda não estava ensaiada e que houve muita desorganização no palco. Isso não é refletido no filme, por exemplo. Foi algo que te surpreendeu?
Sim, a performance foi terrível. A quantidade de espaço morto durante a performance no palco me surpreendeu. Após cada música, há dois minutos onde eles não estão fazendo nada. Isso eu não esperava. Não tenho ideia de por que isso aconteceu. Eles estavam realmente desorganizados. Dylan também sugeriu que talvez estivesse bêbado. Eu não sei. Eu sabia que não era perfeito, mas foi mais bagunçado do que eu havia compreendido.
Quanto da viagem para a Inglaterra em 1964 e a explosão dos Beatles e dos Rolling Stones influenciaram Dylan a mudar seu som para o rock n’ roll?
Foi enormemente influente. Mas eu diria que não tanto para mudar seu som. Ele tinha sido um roqueiro no ensino médio. Após seu primeiro álbum, ele lançou o single Mixed Up Confusion, que soava assim. Ele sempre estava esperando pelo momento em que pudesse fazer isso. Acho que a invasão britânica definitivamente provou para ele que era o momento certo. Quando os Beatles chegaram, muita gente disse: ‘bem, esses caras têm algo realmente diferente’. Mas quando os Rolling Stones ou os Animals chegaram, muitos americanos disseram: ‘espera aí, nós podemos fazer isso!‘.
Muitas pessoas não sabem exatamente a importância do Festival de Newport. Era um centro cultural alternativo que influenciou Woodstock, certo?
Vou tentar explicar para o público brasileiro. O rock n’ roll chegou ao Brasil quase ao mesmo tempo que chegou aos EUA, por volta de 1955. Era divertido, mas não era algo que os estudantes universitários se interessavam. Era algo para as crianças. E Newport era onde os intelectuais sérios iam. Dylan trouxe o público de Newport para o rock. Os Beatles e os Stones seguiram. E este é o momento que abre a porta para pessoas inteligentes como Caetano e Gilberto Gil começarem a fazer essa música. E ela deixa de ser música para dançar e passa a ser música para os intelectuais. Também no Brasil, havia muitas pessoas que não estavam felizes com a Tropicália. E Dylan foi o modelo de: ‘sim, vocês estão me vaiando, mas eu sou o futuro’.
Sobre as relações amorosas de Dylan, com Joan Baez, Suze Rotolo, Sara Lownds, entre outras. Ele era um parceiro ruim?
Depende do que você esperava dele. Você pode dizer o mesmo sobre Joan Baez. Muitas pessoas estavam se envolvendo romanticamente com muitas pessoas nesse período. O que Dylan fez de ruim para Joan Baez não tinha nada a ver com o romance. Ele foi um mau parceiro profissional para Baez. Romanticamente, eles tiveram um momento juntos e ambos tinham outras pessoas. Profissionalmente, ela o levou por todo os EUA e o apresentou. E então, quando eles foram para a Inglaterra, onde ele supostamente faria isso por ela, ele nunca a trouxe para o palco. Já Suze Rotolo sabia no que estava se metendo. Ela não queria ser a namorada que tem que ficar sentada assistindo tudo. Mas eu devo acrescentar que Suze e Dylan permaneceram amigos até o dia em que ela morreu. Quando ela ficou doente, ele imediatamente perguntou se ela precisava de ajuda para pagar suas contas. A coisa surpreendente com Dylan não foi que ele dormiu com 1 milhão de pessoas diferentes, mas sim que ao chegar em Newport, em 1965, ele já estava com Sara Lownds, com quem se casou, teve vários filhos e uma vida muito privada no campo. Lembre-se, essas pessoas estavam na casa dos 20 anos. Quando eu tinha essa idade, as pessoas partiram meu coração. Eu parti o coração de pessoas. É assim que é ter essa idade – mesmo que você não seja Bob Dylan.
Como você analisa as preferências políticas dele? Detecta uma aspiração ao comunismo ou seria meio superficial rotular assim?
Eu certamente não rotularia. Dylan não era um pensador político. Era alguém que tinha sentimentos fortes sobre injustiça. Ele não se encaixava em grupos. Se você dissesse a Dylan que ele tocava música folk, ele diria que você estava errado. E mais tarde, se você dissesse que ele tocava rock, ele diria que você estava errado. Ele definitivamente não gostava de ser colocado em uma caixa. E isso inclui a política. Mas ele tinha a sensação de que certas coisas estavam erradas. Ele achava que o racismo era errado, que a pobreza era errada. Tem aquela grande frase sobre ‘pessoas que não têm muita comida na mesa, mas têm muitos talheres e precisam cortar alguma coisa’ [da canção Talking New York]. Ele tinha essa noção dos filmes de Marlon Brando e James Dean, o fora da lei sendo o herói. Ele fazia parte do movimento que desconfiava de todos os velhos que ameaçavam destruir o mundo, seja Khrushchev, Eisenhower ou Johnson. Esse era o apelo de Cuba para ele. O apelo de Cuba não era por causa do comunismo, mas sim por se tratar de um momento no qual um grupo de jovens estava dizendo que não queria receber ordens dos velhos.
Dylan Elétrico: Do Folk ao Rock
- Autor: Elijah Wald
- Tradução: Christiano Sensi
- Editora: Tordesilhas (320 págs.; R$ 74,90)
Um Completo Desconhecido
- Onde assistir: Disney+
- Direção: James Mangold
- Elenco: Timothée Chalamet, Monica Barbaro, Elle Fanning, Edward Norton e Boyd Holbrook