Um doc sobre o mais famoso prédio de São Paulo venceu o 30º É Tudo Verdade. Copan, dirigido por Carine Wallauer, uma gaúcha que habitou o edifício da Avenida Ipiranga por sete anos, é mostrado em chave sensorial. As imagens falam muito, há poucas entrevistas e a vida pulsante dos mais de 5 mil habitantes do prédio é captada por meio de raras entrevistas e muita observação. É um filme sensível, trabalho inspirado do ponto de vista das imagens, e mereceu o prêmio.
Copan é quase o oposto de Edifício Master, de Eduardo Coutinho. Neste, o diretor conversava longamente com os moradores do prédio de Copacabana e investia na subjetividade dessas pessoas – seus medos, alegrias, angústias, etc. Em Copan, até pela estratégia de observação, essa subjetividade aparece menos evidente. Aliás, os moradores dão lugar, em ordem de importância, aos funcionários do edifício, estes sim os “heróis” do filme. “Os moradores passam, vão morar em outro lugar; os funcionários ficam, eles são a alma do prédio”, diz a diretora.
De fato, é através da observação do funcionamento de um edifício daquelas dimensões, uma espécie de minicidade encravada na megalópole, que percebemos a sua vida pulsante. E suas contradições, que aparecem explícitas em dois momentos culminantes. Um, na assembleia do condomínio para reeleger o síndico que está na sua 16ª gestão, mas tem seus opositores. A temperatura sobe, como costuma acontecer em reuniões do gênero, online ou presenciais. Outro momento tenso é o da eleição presidencial de 2022, quando a polarização existente na sociedade se expressa também no Copan, opondo lulistas a bolsonaristas. O próprio corpo de funcionários se divide.
Mas o diferencial do filme é a maneira como o olhar da câmera tenta se apropriar de sua “alma”. Seja em seu interior, seguindo pelos corredores curvos ou nas garagens, seja pelo exterior, em sua fachada que se aproxima por imagens de drones, ou na escada de incêndio com sua circularidade que lembra um desenho de Escher. Tudo é grandiosidade e mistério no prédio desenhado por Oscar Niemeyer, que no entanto buscava a simplicidade e o despojamento. Esse mistério, as imagens podem sugerir mais que as palavras.
Escrevendo Hawa, de Najiba Noori (Afeganistão) venceu o módulo internacional do É Tudo Verdade. Fala dos efeitos da tomada do poder pelos talibãs, em especial sobre a população feminina.
Outros vencedores merecem registro. “Bruscky: Um Autorretrato”, de Eryk Rocha, ganhou o Prêmio edt (Associação de Profissionais de Edição Audiovisual (para Caio Lazaneo), e o Prêmio Maria Rita Galvão de melhor pesquisa (ABPA-PAVIC-REPIA) para Natália Lacerda Bruscky e Yuri Bruscky.
Trata-se de uma original tentativa de perfilar o artista recifense Paulo Bruscky, na qual vale mais o registro do cotidiano do artista que seu trabalho. Busca-se uma abordagem sempre diferente: por exemplo, ao invés de uma entrevista com o artista, a câmera (e o microfone) acompanham sua ida, como habitué, a um bar no mercado do Recife, no qual costuma tomar suas cervejas com desconhecidos. O papo furado de botequim seria mais revelador do que uma conversa formal sobre sua obra ou vida. Pelo menos é a hipótese do cineasta Eryk Rocha. Ao personagem, o formato agradou: “Ele escaneou a minha alma”, disse Bruscky, emocionado, durante a entrega de prêmios.
O longa Quando o Brasil Era Moderno, de Fabiano Maciel, ganhou uma Menção Especial do Júri. É um acurado estudo das relações antagônicas entre modernismo e tradicionalismo que marcam presença na arquitetura nacional e, por extensão, em toda sua cultura e história. Com idas e vindas, passos adiante e para trás, como costuma ser no Brasil.
Por exemplo, o final da década de 1950 era marcado por uma tendência modernizante muito clara – a bossa nova, o novo teatro, JK, Brasília, nova educação (Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira) etc. Como backlash, a onda contrária, vem o golpe de 1964, em que militares e setores retrógrados da sociedade civil tomam o poder, implantam uma ditadura e dão início ao processo de desfazer tudo o que de progressista havia sido feito até então.
Essa dança entre a aspiração ao futuro e o apego ao passado parece ser a tônica da sociedade brasileira, como se pode observar neste exato momento da vida nacional. Essa, digamos, dialética, vem expressa no documentário, muito bem pensado e pesquisado, embora de pouca ousadia estética em sua realização.
Já o curta Palavra, de DF Fiúza (Bahia), é o exato oposto. Ganhou o Prêmio edt (Associação de Profissionais de Edição Audiovisual), para DF Fiúza, e Menção honrosa do Júri Oficial. Ao contrário do que diz seu título, vale-se apenas de imagens para descrever o cotidiano de mulheres artesãs em um pequeno povoado no interior da Bahia. A poesia das mãos, que realizam um trabalho ancestral, é vista num registro de rara inspiração e rigor.
Afora os premiados, muitos outros bons filmes fizeram parte da programação do É Tudo Verdade nesta sua 30ª edição. Por exemplo, os emocionantes relatos palestinos de Histórias do Marco Zero. Ou a trajetória de coragem e talento de uma escritora em A Estrada Azul – a História de Edna O’Brien. Um artista brasileiro revendo sua obra em Olhar Inquieto: o cinema de Jorge Bodanzky. Também para não esquecer, as imagens pungentes da tragédia no Rio Grande do Sul em Rua do Pescador nº 6.
E, sobretudo, o presente oferecido ao público que foi acompanhar a premiação, o incrível filme de encerramento Trens, do polonês Maciej J. Drygas, vencedor do ITFA, o festival de Amsterdã, considerado o mais importante do gênero documental. O filme usa imagens de 46 arquivos de todo o mundo. Mais do que documentar a indústria ferroviária, o filme ressalta a presença do trem na história europeia do século 20, marcada pelas tragédias das duas guerras mundiais. As imagens são incríveis em sua pureza e força, trabalhadas numa montagem espetacular e reforçadas por um trabalho sonoro de impacto. Mergulhamos de cabeça no pesadelo europeu, em que o máximo de tecnologia parece redundar na hipertrofia da barbárie quando se evoca o trem como transporte preferencial de pessoas para os campos de concentração nazistas.
O festival deste ano programou ainda duas retrospectivas, dos documentaristas Vladimir Carvalho e do britânico Humphrey Jennings.
Vladimir nos deixou ano passado. Paraibano, radicado em Brasília, foi um dos nossos mais importantes documentaristas. A homenagem concentrou-se nos nove longas que dirigiu ao longo de meio século de trabalho, obras como O País de São Saruê, O Homem de Areia, O Evangelho segundo Teotônio, Conterrâneos Velhos de Guerra e outros. Uma foto do jovem Vladimir, com a claquete de Cabra Marcado para Morrer, o clássico de Eduardo Coutinho, ilustra a capa do catálogo do É Tudo Verdade e sua vinheta.
O outro homenageado foi o documentarista britânico Humphrey Jennings (1907-1950), praticamente desconhecido entre nós, embora a ele tenha se referido o sempre atento Paulo Emílio Salles Gomes no Suplemento Literário do Estadão em 1958, no artigo A Lição Inglesa. Escreve Paulo Emílio: “A razão pela qual Jennings ainda não obteve fora de seu país o renome que merece reside, talvez na profundidade do seu britanicismo (…) Suas melhores fitas, Family Portrait, Diary for Timothy e Listen to Britain, são um calidoscópio de alusões íntimas aos costumes, à cultura e às manias da Inglaterra e o espectador estrangeiro não pode com uma só visão apreciar o sabor raro dessas obras”.
Sabor raro, de fato. No É Tudo Verdade foram programados oito filmes de Jennings, a maior parte curtas ou médias-metragens, obras de esforço de guerra, rodados quando a Inglaterra suportava sozinha o peso da Alemanha de Hitler e Londres era bombardeada noite após noite pela aviação nazista.
São filmes formidáveis, pela maneira como trazem o clima de terror da guerra, mas ao mesmo tempo a força de um povo, a solidariedade que se cria na defesa de um modo de vida diante de um inimigo comum. Como diz ainda Paulo Emílio, “Todo o passado do documentário britânico o tinha tornado apto, pelo relato da fadiga e beleza da vida cotidiana, a contar o heroísmo do homem comum, na adversidade.”
Esse espírito aparece em filmes como Londres Resiste!, Ouça a Grã-Bretanha, Palavras para a Batalha e A Vila Silenciosa. Em Tempo Livre, Jennings retrata o lazer da classe trabalhadora no pré-guerra. No maior de todos, e não apenas pela duração, o emocionante Começaram os Incêndios, mostra o trabalho noturno dos bombeiros durante os bombardeios sobre Londres. A retrospectiva foi acompanhada do documentário Humphrey Jennings: O Homem que Ouvia a Grã-Bretanha, de Kevin MacDonald, eficaz introdução à obra desse cineasta ainda negligenciado.
VENCEDORES
. “Copan”, de Carine Wallauer (Brasil-França) – melhor longa brasileiro
. “Escrevendo Hawa”, de Najiba Noori (Afeganistão, França, Países Baixos e Catar) – melhor longa internacional
. “Sunkande Kasáká l Terra Doente”, de Kamilla Kasáká e Fred Rahal – melhor curta brasileiro
. “Eu Sou a Pessoa Mais magra Que Você Já Viu?”, de Eisha Marjara (Canadá) – melhor curta internacional
. “Bruscky: Um Autorretrato”, de Eryk Rocha (Brasil) – Prêmio edt (Associação de Profissionais de Edição Audiovisual (para Caio Lazaneo), e Prêmio Maria Rita Galvão de melhor pesquisa (ABPA-PAVIC-REPIA) para Natália Lacerda Bruscky e Yuri Bruscky.
. “Palavra”, de DF Fiúza (Bahia) – Prêmio edt (Associação de Profissionais de Edição Audiovisual), para DF Fiúza, e Menção honrosa do Júri Oficial
. “Quando o Brasil Era Moderno”, de Fabiano Maciel (longa-metragem, RJ) – Menção Especial do Júri
. “Dois Nilos”, de Samuel Lobo e Rodrigo de Janeiro (RJ) – Prêmio Canal Brasil