“A depressão roubou parte da minha vida”. Esse é o relato de Marcela Carolina, 44 anos, que convive com a depressão há mais de 20 anos. Ela é um dos rostos por trás da estatística: em 2024, o Brasil teve o maior número de afastamentos do trabalho por transtornos mentais em dez anos.
O g1 teve acesso a dados exclusivos do Ministério da Previdência que mostram que, no último ano, foram mais de 470 mil afastamentos por doenças de saúde mental no país. O número reflete um aumento de 68% com relação ao ano anterior. (Veja o gráfico abaixo)
Os números se traduzem em histórias de quem enfrenta na pele a realidade com essas doenças.
(Esta matéria faz parte de uma série de matérias no g1 que explicam o recorde de afastamentos por saúde mental, como reconhecer se há um quadro de depressão e ansiedade e um quiz para identificar sinais de que seu trabalho pode ser tóxico)
Os rostos por trás dos números
Marcela Carolina, que lida com a depressão há vinte anos
Arquivo Pessoal
Marcela Carolina da Silva, 44 anos.
A jornalista convive com a depressão há 20 anos. Ela descreve a doença como uma tristeza profunda que não consegue controlar. Mesmo fazendo acompanhamento com psicólogo e psiquiatra, e buscando um estilo de vida mais saudável, sente como se essa sensação fosse permanente.
Sua primeira crise ocorreu no início da carreira, quando concluía a faculdade de jornalismo. Marcela não conseguia sair da cama, e nada parecia aliviar aquela mistura de dor e tristeza. Nos anos 90, quando isso aconteceu, sua família não compreendia o que se passava — nem ela mesma. Até que, em um momento crítico, tentou pôr fim à própria vida. Foi socorrida e internada em uma clínica psiquiátrica.
“Hoje, olhando para trás, sinto que a doença roubou parte da minha vida. Na minha juventude, quando todos namoravam, iam a festas, conheciam pessoas, eu estava no quarto”, conta.
Foi apenas anos depois que Marcela entendeu que aquela “sensação” tinha um nome: depressão. O psiquiatra Wagner Gattaz, especialista em saúde mental no ambiente de trabalho, explica que casos assim eram comuns, mas que, atualmente, o debate sobre saúde mental tem permitido um maior amparo aos pacientes.
“Antes, as pessoas sofriam e buscavam ajuda em várias especialidades médicas sem obter respostas. Muitas passavam anos sem compreender o que tinham. Hoje, se alguém com uma crise de ansiedade vai a um cardiologista, por exemplo, ele já sabe como encaminhar para um psiquiatra. Isso facilita o diagnóstico e o tratamento”, explica.
Já são duas décadas de tratamento, entre altos e baixos. Agora, ao lembrar tudo o que viveu, Marcela se questiona: o que eu seria hoje se não fosse minha depressão incapacitante?
Frase – Marcela Carolina
🔴 Marcela ainda enfrenta um fator agravante: ela é uma mulher negra. Em 2024, depois de um episódio de racismo no trabalho, se viu tomada pela depressão e teve que se afastar — o que não fazia há pelo menos uma década.
Segundo especialistas, o racismo contribui para o desenvolvimento e agravamento dos transtornos mentais. Dados do Ministério da Saúde mostram que o número de suicídios é 45% maior entre pessoas pretas e pardas em comparação às brancas.
Betriz de Oliveira Lima, 25 anos
Arquivo Pessoal
Beatriz de Oliveira Lima, 25 anos
Beatriz foi diagnosticada com depressão e Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) ainda na adolescência. Sua história reflete o impacto do crescente debate sobre saúde mental. Desde que soube, sempre manteve o acompanhamento e fazia terapia regularmente.
Ela conta que tudo parecia sob controle até a pandemia. Beatriz havia saído da Bahia, onde morava com os pais, para trabalhar em São Paulo. Passou os primeiros anos da crise isolada em um cubículo de poucos metros, com medo de perder o emprego e a moradia, já que não tinha reservas financeiras. Os dias eram de trabalho intenso.
Frase – Beatriz de Oliveira
🔴 Segundo a OMS, a depressão é a doença mais incapacitante do mundo. Beatriz sentiu isso na pele: perdeu o apetite, tinha dificuldade para sair da cama, acumulava louça na pia por semanas e evitava contato com outras pessoas.
O psiquiatra Arthur Danila, pesquisador de ansiedade e depressão, explica que a pandemia foi um dos fatores responsáveis pelo aumento dos transtornos mentais. Pode parecer exagero falar em pandemia de Covid-19 em 2025, mas a crise terminou há apenas três anos — um tempo curto para superar suas cicatrizes.
Algumas dessas marcas são:
➡️ Insegurança financeira devido à perda de empregos e ao aumento da inflação;
➡️ Maior informalidade e instabilidade de renda;
➡️ Luto pela perda de familiares;
➡️ Fim de relacionamentos – o número de separações cresceu 16% durante a pandemia;
➡️ Estresse emocional pós-crise.
“A vida voltou ao ‘normal’, mas de uma forma diferente. Foram mudanças abruptas, em meio a um cenário de estresse, no qual as pessoas sequer sabiam se iam sobreviver. Foi preciso sair do modo ‘emergência’ para perceber as consequências disso”, explica Danila.
Amanda Abdias, 28 anos
Arquivo Pessoal
Amanda Abdias, 28 anos
Amanda sentiu a pressão financeira na pele. Após a pandemia, precisou assumir uma tripla jornada de trabalho quando seu marido foi demitido e os custos de vida aumentaram.
De 2020 a 2024, o preço dos alimentos subiu 55%. Ou seja, um orçamento que antes garantia a alimentação da família já não é suficiente. Além disso, a renda disponível das famílias para gastos extras caiu de 42,4% em dezembro de 2023 para 41,9% no mesmo período em 2024. (Veja o gráfico abaixo)
Com três empregos, Amanda não tinha tempo para lazer ou cuidados com a própria saúde, sequer consultas médicas.
Frase – Amanda Abdias
O esgotamento fez com que ela precisasse se afastar do trabalho por alguns meses, resultando em sua demissão. Hoje, busca equilibrar as contas enquanto tenta manter uma carga horária menor.
Thatiana Cappellano, mestre em ciências sociais e pesquisadora sobre transtornos mentais no trabalho, explica que a cultura profissional mudou com a pandemia — e que esse ritmo acelerado não desacelerou após a crise.
“Muitas pessoas foram demitidas, e as que permaneceram precisaram assumir uma carga de trabalho muito maior. Quando a pandemia terminou, essa exigência não foi reduzida. O problema é que talvez não tenhamos estrutura psíquica e física para sustentar esse ritmo por tanto tempo”, avalia Thatiana.
Mulheres são maioria entre os afastados
Perfil das pessoas afastadas por saúde mental
Os dados do INSS permitem traçar um perfil dos trabalhadores afastados: a maioria é mulher (64%), com idade média de 41 anos e diagnosticada com transtornos de ansiedade e depressão. Em média, passam até três meses afastadas do trabalho.
🔴 Os especialistas apontam fatores sociais como responsáveis por esse cenário: sobrecarga de trabalho, menores salários, acúmulo de responsabilidades familiares e violência.
➡️ Segundo o IBGE, as mulheres ganham menos que os homens em 82% das áreas. (Leia mais aqui)
➡️ O número de feminicídios aumentou 10% nos últimos cinco anos. (Leia mais aqui)
➡️ Uma pesquisa publicada na revista científica The Lancet revelou que mulheres foram mais impactadas pela crise, apresentando maior taxa de desemprego e trabalho não remunerado. (Leia mais aqui)
“Esse padrão social gera uma sobrecarga enorme. Ao mesmo tempo, as mulheres recebem salários menores e, muitas vezes, são as principais provedoras da família”, explica Arthur Danila, psiquiatra e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP).
O último Censo mostrou que as mulheres são responsáveis financeiramente por 49,1% dos lares brasileiros — o que equivale a 35 milhões de famílias. A maioria dessas mulheres tem mais de 40 anos, a mesma faixa etária predominante entre os afastamentos por transtornos mentais.
“Isso é uma tragédia social anunciada. Se as mulheres, que hoje sustentam boa parte das famílias brasileiras, estão nesse nível de exaustão, isso representa um risco econômico. O consumo pode cair, e muitas famílias podem ficar desamparadas”, alerta Thatiana Cappellano.
Por outro lado, as mulheres também buscam mais ajuda. Elas são mais propensas a procurar médicos e a relatar sintomas emocionais, o que facilita o diagnóstico.
“Desde a pandemia, o tema da saúde mental ganhou mais espaço. Médicos que antes não tinham esse olhar para os diagnósticos de ansiedade e depressão agora têm”, finaliza Wagner Gattaz.