Divulgação
Em seus 10 anos de atuação, Élle de Bernardini já deixou profundas marcas no mercado da arte contemporânea brasileira. Natural de Itaqui, Rio Grande do Sul, Élle foi a primeira artista trans a ter um trabalho adquirido pela Pinacoteca de São Paulo. Além disso, integra o acervo da Biblioteca Nacional da França. Dona de uma produção bastante calcada em sua própria biografia, a artista gaúcha questiona em seus trabalhos os padrões estabelecidos pela sociedade no campo da sexualidade e da identidade de gênero, desafiando o conservadorismo cis-heteronormativo com trabalhos instigantes e provocativos, que passeiam pela pintura, pela escultura, pela instalação, pela performance, pelo vídeo e por composições têxteis.
ambiente da exposição de Élle de Bernardini
Cortesia Galeria Luis Maluf, Ana Aliaga
Para celebrar essa trajetória, a Galeria Luis Maluf apresenta até o dia 7 de maio a mostra individual A Primeira Década. Com curadoria de Ana Carolina Ralston, a seleção em cartaz na galeria reúne trabalhos icônicos e inéditos, traçando um panorama detalhado de sua investigação artística acerca do corpo, da identidade e da estética. Em conversa com esta Vogue, Élle de Bernardini, radicada no Rio de Janeiro, entregou mais detalhes sobre a montagem e refletiu sobre os diferentes aspectos de sua instigante produção. Confira abaixo:
Vogue: Sua exposição recapitula 10 anos de produção artística. Qual é o ponto inicial dela?
Élle de Bernardini: Eu e a curadora da mostra, Ana Carolina Ralston, utilizamos como ponto inicial de contagem a primeira obra minha a ser incorporada em um museu público de relevância nacional, o MARGS em Porto Alegre no ano de 2015. Mas também as primeiras exposições individuais em museus públicos como a mostra Leito que ocorreu em 2015 no Museu de Arte de Santa Maria. Antes disso eu produzia e mostrava meu trabalho desde 2013 em coletivas pelo Brasil.
Penso que em um país como o Brasil, tão vasto e com tantos artistas, ainda assim temos uma história muito recente de artistas trans e fora das normas de gênero dentro do sistema de arte, e podendo mostrar seu trabalho e ser levado a sério por isso. E quando olhamos para os números que assombram essa população, como a expectativa de vida ser de 35 anos de idade apenas; e o Brasil ser o país que mais mata pessoas trans no mundo, demarcar como Primeira Década é pressupor e desejar que outras décadas virão, como a segunda, a terceira. Não só para mim, mas para todes.
Vogue: Uma de suas séries mais conhecidas (e presente na exposição) é “Formas Contrassexuais”. Como você chegou à obra de Paul B. Preciado e de que modo ela te inspirou a fazer essa série?
Élle: Fiz faculdade de Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria, nos anos paralelos ao começo da minha produção no campo das artes visuais, e lá tive a oportunidade de escolher um campo de pesquisa como foco da graduação em bacharelado. Foi então que de Foucault veio Butler e na sequência Preciado. Um pensador foi levando ao outro, num fluxo natural de pesquisa. Porém é na obra do Preciado que eu encontrei uma possível resposta (e solução) para a questão social abrangente sobre os problemas de gênero: uma nova proposta de modelo de sociedade, no caso, a proposta por ele, sociedade contrassexual. A palavra “contrassexual” significa “contra a ideia binária de gênero”. Na filosofia, aprendemos com os filósofos e o seu olhar sobre a realidade ao longo da história da humanidade que todo nosso comportamento e toda nossa organização social depende de um paradigma, um modelo de pensamento que guiará as decisões humanas, a moral, a ética, e todo comportamento em sociedade. Se pensarmos que vivemos em uma sociedade cujo modelo é heteronormativo, o correto a se fazer é questionar o modelo, e buscar outro que possa nos ajudar a aprimorar nossas relações.
Esta série de obras em questão traz para o campo da visualidade como seria essa nova sociedade em que os corpos não possuem gêneros, e tampouco, sexo binário. As obras vão apresentar o que chamo de “geografia corporal”, ou seja, um display onde o corpo pode ser visto construído de modo não convencional, por meio da repetição e sobreposição de suas próprias partes. Para mim arte é simbólica, uso de objetos e materiais que representam ideias. Eu pesquiso materiais que, no imaginário popular, fazem parte das questões da sexualidade como um todo, e com a ajuda dos suportes da arte eu coloco para serem vistas, ouvidas e experienciadas, as ideias de Preciado sobre uma sociedade contrassexual.
tela ‘Anomalia #0’
Divulgação/ Estudio em Obra
Vogue: Quais são os trabalhos mais recentes da exposição? Há obras inéditas na mostra (e quais)?
Élle: A exposição é uma reunião de diferentes séries de trabalhos, performances, vídeo artes e esculturas realizadas durante os últimos 10 anos. Dentre eles as obras intituladas “Anomalias” de 2023 são as obras mais recentes da mostra. Não há obras inéditas na exposição, mas há muitas obras que nunca foram expostas, como a intervenção que realizei em 2014 no livro Menino Brinca de Boneca? (Marcos Ribeiro. ed. 1991) que permaneceu todo esse tempo longe da vista do público, curadores, e qualquer pessoa, e está sendo exibida pela primeira vez.
Vogue: Sua arte é bastante calcada em sua experiência autobiográfica. Como se deu esse processo de levar sua vivência como mulher trans para o campo da arte?
Élle: Eu estudei ballet clássico desde muito nova, meu sonho era ter sido bailarina clássica. Cheguei a estudar na Royal Academy of Dance de Londres, e concluir meus estudos no ballet como uma bailarina mulher. Porém devido a regras muito rígidas com relação aos papéis de gênero dentro do ballet, eu fui impedida de dar continuidade na minha carreira. Costumo dizer que uma frustração me levou a ser artista visual. Foi nas artes visuais que eu melhor encontrei suportes e liberdade para poder falar sobre as questões que me atravessam como sujeito trans no mundo. Meu trabalho não é necessariamente sobre a minha vida, mas ele parte da minha vida para falar do todo, ou seja, a partir das experiências que eu compartilho sendo um corpo fora da norma binária de gênero desde criança, eu consigo compreender e perceber o que todos os outros corpos que também por algum motivo fogem das normas sofrem na sociedade heteronormativa, e o que podemos fazer para resolver o problema da violência e dos discursos conservadores que não agregam nada para o avanço social.
Sem Título (2019)
Divulgação/ Estudio em Obra
Vogue: Como sua formação de bailarina influenciou seu trabalho?
Élle: Ballet clássico é repetição e sobreposição de movimentos. Uma bailarina precisa aprender sobre seu corpo, o funcionamento dos músculos, a força interna, a respiração, e fazemos isso por meio da repetição de movimentos específicos. Tais movimentos trabalham cada um, uma parte do corpo, repeti-los com o passar do tempo aprimora não só o movimento em si, mas a percepção de si que o movimento tem como princípio ensinar. Já a sobreposição desses movimentos constrói a coreografia, a obra de dança que será mostrada para o público e que carrega seus significados. Meu trabalho é antes de qualquer outra coisa, sobre o corpo humano, e é por meio da repetição e sobreposição de códigos, símbolos, e significados que minhas obras surgem.
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Vogue: Apesar de a arte ser um terreno aberto para ideias e experimentações, há todo um lado conservador especialmente dos “donos” da arte (colecionadores, museus). Como foi a sua experiência nesse sentido, de desbravar esse lugar?
Élle: Muito tranquila. Talvez por meu trabalho ser de fácil interesse em um primeiro momento, porque ele se utiliza de materiais sedutores como pele, silicones, ouro, prata e tecidos, ele atrai com mais facilidade o olhar e o interesse do público em saber o que essas telas peludas com colares pendurados querem dizer. A partir disso a primeira pergunta é despertada: “O que isso significa?” e a porta necessária para o diálogo se abre entre a obra/artista e suas ideias, e o colecionador, e a instituição, e o sistema. Gosto de pensar que todo meu trabalho é uma ponte que leva a uma compreensão do que precisamos fazer como sociedade para melhorarmos. Nesse sentido ele tem forte caráter pedagógico, e ele é criado de modo bastante racional.
Élle de Bernardini com ‘Formas Contrassexuais para vestir’ (2019)
Divulgação/ Estudio em Obra
Vogue: De que modo a arte reforça os padrões de heteronormatividade, na sua opinião? Como você avalia a participação (ou falta de) de pessoas trans e fora dos padrões de binariedade na cena artística?
Élle: A arte em si não reforça padrões, ela os desmitifica. O que reforça padrões de produção na arte é o sistema composto por pessoas que se utilizam apenas de seu gosto pessoal e suas redes de contatos para atuarem no universo da arte como uma profissão. Quero dizer com isso que o mercado e as instituições, quando seus limites não estão bem demarcados, se utilizam da arte para fazer qualquer outra coisa que não a própria arte e a difusão de suas ideias e seus artistas. Por exemplo: dinheiro. Quando o objetivo é fazer dinheiro com arte não importa a obra e o artista, importa o que falamos sobre eles para que possamos convencer quem pode comprar, comprar. Surgem daí as tendências de mercado dentro da arte, porque o mercado possuí uma lógica de novidade constante, deste modo o tempo necessário de amadurecimento do processo e do pensamento e da criação de um artista é afetado. E quanto menos privilégios os artistas possuem, mais difícil será conseguirem transformar o que fazem em um meio de vida, em uma carreira, em uma profissão. Muitos sucumbem ao mercado e suas exigências porque precisam viver, pagar contas etc… Tendo isto em vista, artistas homens, brancos, com redes de contatos e privilégios podem se dar ao luxo de fazerem e criarem o que querem, porque suas obras já estão vendidas antes mesmos de estarem concluídas, e não há sobre esses sujeitos qualquer urgência especifica para atuarem na arte.
Vogue: Depois desta exposição, onde poderemos ver seu trabalho?
Élle: Muita coisa está na agenda para acontecer ainda este ano, dentro da comemoração dos 10 anos e fora dela. No encerramento da exposição no dia 7 de maio ocorrerá mais uma sessão da performance ‘Dance With Me’ que é uma obra bastante conhecida. Estou participando também de uma coletiva sobre artistas mulheres no acervo do Museu Nacional da República em Brasília. Nessa mostra a curadora, Fran Favero busca revisar as artistas que lá estão e mostrar suas obras, mas também corrigir lacunas na coleção do museu incorporando novas obras e novas artistas. Fui convidada para criar uma obra inédita para a coleção do governo brasileiro e que será permanentemente exposta no Palácio do Planalto. E em junho abre no Solar Fabio Prado em São Paulo a coletiva ‘Nem tudo que reluz’, com curadoria de Ana Avelar a mostra convida o público a refletir sobre os múltiplos usos do adorno.
obra da série ‘Sex-líticos’ (2020)
Divulgação/ Estudio em Obra
Galeria Luis Maluf: Rua Brigadeiro Galvão, 996, Barra Funda, São Paulo; @luis_maluf
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