A professora Ana era nova no magistério. Tinha estudado muito e fora aprovada entre os primeiros lugares no concurso. Estava feliz pela chance de começar sua carreira em uma boa escola pública.
O professor Cleberson estava na mesma escola havia 28 anos. O tigre do tempo havia arranhado seu rosto com sulcos profundos. O cotidiano da educação erodiu seu entusiasmo inicial. Ele não escondeu o sorriso irônico quando a nova professora chegou. Ela, uma montanha de projetos e de sorrisos; ele, um poço fundo de decepções e sarcasmos. O viço juvenil da novata tornava a secura do veterano ainda mais insuportável.
Nas reuniões que antecediam o ano letivo, a posição de Cleberson era sempre a mesma: “Isso não vai dar certo!” Era enfático:
“Eles não querem nada com nada. Ensinar aqui é arar o mar”. A última expressão ele aprendeu em um romance de García Márquez. Era a decepção do general Bolívar diante da obra da sua vida: a liberdade da América. O professor veterano foi empenhado no começo da carreira, porém… anos de alunos recalcitrantes, dezenas de projetos públicos que a cada gestão surgiam do nada e a nada levavam, o convívio com os colegas da escola: um desgaste constante. A chuva dos anos tinha provocado voçorocas onde antes existiu solo fértil.
Quando a direção anunciou que haveria a chance de trabalhos interdisciplinares, Ana exultou; Cleberson soltou um suspiro entediado. Para ela, abria-se um novo horizonte no qual poderia colocar em prática teorias universitárias. O colega mais velho sentenciou em um pequeno círculo na sala dos professores: “Aqui só temos de dar um verniz para parecer que estamos ensinando, manter um pouco a ordem e mandá-los para a nova série, todos os anos. Eles nunca vão ultrapassar o limite do mundo deles e nem desejam isso”. O tom ácido do docente causava graça entre os mais velhos e um certo horror em Ana.
As estratégias do mestre cansado eram variadas. O sinal tocava, todavia ele se demorava a sair da sala dos professores. Era intencional. Se a aula tinha 7h30 como horário de começo, ele saía cinco minutos depois. Se liberasse seus pupilos também um pouco antes do intervalo, retornando com certo atraso depois e, por fim, encerrasse um instante antes do sinal, tudo isso renderia 20 minutos por manhã, 100 minutos por semana, 400 minutos por mês. Para disfarçar, preferia ficar mais tempo no banheiro no final do intervalo.
Certo dia, a tragédia chegou à escola. Um ex-aluno, com problemas de ordem psíquica, tomou a arma do pai e invadiu o estabelecimento para se vingar de um desafeto. Pânico nos corredores! Gritos de todos os lados! Alguns conseguiram trancar-se nas salas; outros corriam desesperados diante das ameaças e dos tiros para o ar. Ana estava na biblioteca com alguns alunos. Ao perceber o perigo, trancou a porta por dentro e mandou que todos se deitassem. No corredor onde estava o aluno causador do tumulto, surgiu a figura improvável de Cleberson. Tinha ficado um longo tempo no banheiro, com fones de ouvido, como era seu costume procrastinador. Não percebeu a confusão. Atrás do professor, paralisado, o aluno alvo do criminoso. A arma disparou várias vezes. Findas as balas, um funcionário imobilizou o agressor e derrubou-o. O professor Cleberson estava no chão, sem vida, tendo recebido no peito os disparos feitos para o discente atrás dele. Havia virado um escudo.
A paz voltou aos poucos entre choros e narrativas. O aluno que teria sido vítima das balas explicou que estava saindo do banheiro quando o professor se colocou à sua frente para protegê-lo. Na versão que chegou à imprensa, o velho professor tinha dado a vida para salvar seu aluno. A narrativa se espalhou. A instituição foi rebatizada com o nome heroico de Escola Estadual Professor Cleberson de Oliveira. Com o passar dos anos, surgiram vários depoimentos sobre a dedicação épica do professor. A Secretaria de Educação criou o Prêmio Cleberson de Inovação Pedagógica. Dois anos depois do evento trágico, foi inaugurada uma praça com o nome do docente. Uma doação dos pais erigiu um busto de bronze com frases no pedestal sobre o valor de dar a vida pelos alunos. Como o velho Simon Bolívar, o professor batizava a geografia mesmo desiludido sobre o futuro. Dez anos depois, a professora Ana era a nova diretora. No discurso de boas-vindas aos calouros, exaltou a biografia do padroeiro da casa. Nossa conclusão, querida leitora e estimado leitor, é: você só tem um relativo controle sobre sua memória em vida. O heroísmo pode ser inventado ao sair de um banheiro. Depois, a vontade de crer pode impor-se ao real. Nosso desejo de sentido é a mais poderosa máquina de ficções. Evite pesquisar muito a biografia de quem batiza praças e escolas. Para manter a esperança no mundo, faz bem uma dose moderada de amnésia.