É bem provável que o leitor, ao avançar pela primeira parte do livro Na Nossa Pele (Objetiva), escrito pelo ator e diretor Lázaro Ramos, sinta vontade de chamá-lo pelo apelido de Lazinho – ele mesmo se chama assim no texto. Ou, então, que escute a voz de Lazinho percorrendo as cento e tantas páginas do livro que fala sobre temas como mobilidade social, racismo e outras questões da atualidade para as quais ele tenta apontar soluções – algo que, ele admite, não é fácil.
Normal. Essa é a ideia, segundo Ramos. Oito anos depois de ter se lançado na literatura adulta com Na Minha Pele (relembre a entrevista de 2017) – o ator também já escreveu para adolescentes e crianças -, ele volta com uma espécie de sequência da obra em Na Nossa Pele – Continuando a Conversa, que chega às livrarias nesta terça, 18. Em breve, os dois livros ganharão tradução para inglês, francês e espanhol.
Lázaro Ramos gosta de papear, como avisa logo na introdução. E confirma ao Estadão. “As memórias mais bonitas, mais emotivas, mais divertidas que eu tenho da minha vida são as conversas”, diz, referindo-se à família. “Sinto falta disso, depois que saí de Salvador e vim morar no Rio de Janeiro.”
De 2017 para 2025, o ator e escritor trouxe um elemento novo para o diálogo. A história de sua mãe, Célia Maria do Sacramento, que morreu quando ele tinha 18 anos. Dona Célia foi empregada doméstica. Do quartinho dos fundos do apartamento onde ela trabalhava, Lazinho viu a mãe receber um tapa na cara proferido pela dona da casa.
A cura dessa ferida em Lázaro veio no processo de escrita de Na Nossa Pele, e também depois de um burnout que o paralisou em 2024. “Eu disse: ‘Deixe-me olhar para a minha mãe, quem ela foi de verdade, para entender o que aprendi disso, e não ficar somente num lugar de diagnóstico triste’’’, conta.
Nesta entrevista ao Estadão, Lázaro Ramos fala sobre as ideias que apresenta no livro e afirma que está em busca de novas formas de sensibilizar as pessoas para que elas possam, assim como ele, se curar ou, ao menos, entender suas dores.”
Assim como no primeiro livro, em Na Nossa Pele você propõe uma conversa com o leitor. Conversar é trocar ideias – e o tema do livro passa também pela questão da escuta e de ser escutado. Como chegou nesse formato?
Eu apresentei por anos o programa de entrevista Espelho, no Canal Brasil. Nele, eu não entrevistava, praticamente só escutava. Acredito que boa parte da minha formação intelectual veio do Espelho, das pessoas que encontrei e escute e com as quais, às vezes, discordava. Isso me beneficiou muito. Intelectual e afetivamente, sou fruto disso. Fui cozido nessa linguagem, nessa maneira de me comunicar. E isso não vem só do meu campo profissional, mas da minha família também. É uma família que não me ofereceu Atari na minha juventude, mas me ofereceu sentar numa roda e conversar, contar histórias. As memórias mais bonitas, mais emotivas, mais divertidas que eu tenho da minha vida são as conversas. E eu sinto falta disso, depois que saí de Salvador e vim morar no Rio de Janeiro. No período em que vivemos, no nosso País, onde as pessoas têm muitas certezas, a internet virou um lugar que é tribunal, um lugar de pensatas de coach e de autoverdades. Estamos esquecendo um pouco de se conectar, e uma das melhores maneiras de se conectar é conversando.
Com os livros, você passou a ser ouvido de uma maneira diferente do que é por meio das novelas, dos filmes e do teatro?
Certeza absoluta. No meu trabalho como ator, vivo muitos sonhos, sempre em uma história que outra pessoa propôs para executar. Esses dois livros são a minha história. São as minhas fragilidades, meus aprendizados. Como ator, você tem a pessoa que curte o seu trabalho, te admira pela persona pública e acha que te conhece. No livro, expresso um pouquinho do meu ser, da minha intimidade para as pessoas. Não com o propósito de ser autocelebrativo, mas de me aproximar do leitor. Os temas de formação de identidade, desigualdade social e luta antirracista são sempre muito delicados. E quanto mais tempo passa, mais fica delicado e difícil de se conversar. Um livro complementa muito o outro. Não sei se são livros que vão envelhecer bem, mas eles são úteis agora. É uma literatura para hoje, para se trabalhar hoje.
Tive burnout. Meu corpo me parou. Isso disparou uma vontade, uma coragem, de olhar para coisas que eu estava silenciando há muito tempo
Dona Célia, sua mãe, é uma personagem importantíssima nesse novo livro. Não deve ter sido fácil relembrar as violências que ela sofreu ao longo da vida. Tem algo de curativo nesse processo?
Curativo é a palavra certa. Principalmente por eu conseguir olhar para minha mãe para além das dores. Durante muito tempo, como eu acompanhei muito de perto o impacto do sofrimento dela, as minhas memórias dela eram adultas. Eram os desafios, as dificuldades. Alguns pedaços de texto (para o livro) eu tinha escrito quase como um diário. Uma coisa para mim. Eu não sabia o que ia virar esse livro. Tanto é que o título dele era Como se apropriar da arte para ajudar a conviver em tempos de caos. Falava sobre práticas artísticas e como elas podiam ajudar a todo mundo, não somente o ator. Falava muito sobre respiração, entrar em contato com o outro. Dizer: “Olha gente, independente de você ser um artista ou não, tem práticas aqui na minha profissão que podem te ajudar a ter um bem viver”.
Mas, no ano passado, tive burnout. Meu corpo me parou. Isso disparou uma vontade, uma coragem, de olhar para coisas que eu estava silenciando há muito tempo. A minha dificuldade de saber o que fazer se não eu estivesse trabalhando. O grande sentido, o que melhor me descrevia, era trabalhar. Em alguns momentos, isso me levou ao ponto de estar duas da manhã respondendo e-mail, acordando para escrever, decupando cena, sem ter pausa. “Quando ninguém manda em mim, o que é que eu faço?”. Uma coisa estranha para o adulto, né? Junto com isso, fui olhar também a história da minha mãe, que eu tinha omitido no primeiro livro porque eu achava que era uma história que ia desestimular as pessoas, e eu não queria fazer um livro desestimulante. Então, disse: “Deixa eu olhar para a minha mãe, quem ela foi de verdade, para entender o que eu aprendi disso, e não ficar somente num lugar de diagnóstico triste”.
Acha que oferece também a cura ao leitor, por meio da história dela?
A vontade é essa. Há muito tempo, faço um exercício, seja em peças de teatro que eu vou montar, como O Topo da Montanha, seja nos filmes que eu vou dirigir, documentários, filme adolescente que eu fiz, que é não parar minhas histórias no diagnóstico. Quero oferecer a cura. Tento encontrar algumas maneiras de oferecer isso, porque diagnóstico está cheio – aliás, é o que mais tem hoje em dia. Além do mais, eu acho que, silenciosamente, vivemos com algumas doencinhas. As nossas ansiedades, insegurança profissional, incapacidade de diálogo, de se conectar com as pessoas, dúvida sobre como lidar com o mundo atual, no qual a inteligência artificial pegou e vai mudar, e está mudando, e estamos pensando “eita, o que é que vai ser daqui a pouco?”. O livro não chama Na Nossa Pele à toa. É a minha tentativa de procurar alguma maneira para estimular os leitores.
Você acha que a vida da sua mãe teria sido diferente se ela tivesse sido escutada em algum momento?
Acho que a vida da minha mãe seria diferente se ela tivesse conseguido desenvolver os talentos dela. Minha mãe concluiu os estudos já adulta, trabalhando numa carga horária muito pesada. Ela era uma pessoa muito talentosa, em todos os sentidos. Era uma pessoa que se comunicava muito bem. Enquanto cozinheira, criava pratos – e ela não conseguiu desenvolver plenamente isso. É mais do que escuta, é o desenvolvimento pessoal, porque nem sempre quem escuta ouve de verdade. Só escutar não basta. Falo de desenvolvimento pessoal, de oportunidade. Isso faz muita diferença.
Quando você cita o racismo pela primeira vez no livro, você solta um “Chii”, prevendo o incômodo de alguém por você trazer o tema para texto. Por que você acha que as pessoas não querem conversar sobre racismo?
Porque é incômodo, porque mexe com aquilo que estamos acostumados, nos faz sair dos nossos confortos. E não é só o racismo, não. Eu me lembro de várias vezes na minha vida de ter sido chamado a atenção por alguma atitude machista minha. O incômodo era profundo. Primeiro por ter sido flagrado, e, segundo, porque agora eu não estou mais na ignorância. Agora eu preciso fazer alguma coisa, principalmente pelos meus princípios. Os meus princípios dizem assim: “Cara, se liga aí, não dá pra continuar sendo desse jeito”. Precisamos ter coragem de, com o passar do tempo, renovar a linguagem para conversar de acordo com a realidade atual. Eu não acho que é um assunto estanque, que tenha apenas uma solução. O problema é que muitas vezes discutimos o racismo nas crises, nos momentos em que as pessoas estão com os nervos à flor da pele. Quando o abordo no livro, é muito nesse contexto de ‘vamos construir’.
Você deve ter visto o caso do jogador Luighi, do Palmeiras (ele foi vítima de racismo em um jogo no Paraguai). Ele manifestou o incômodo dele na hora, na crise. Isso contribuiu para o debate?
Existe resposta simples para um problema complexo? É uma das questões que eu tenho pensado muito. Cada pessoa é uma pessoa, cada pessoa vê, recebe, reage. A individualidade é um direito que temos também, não? Algumas causas são coletivas, Porém, não existe um ISO 9000 sobre qual é a reação ideal quando você está em momento de crise. Nos últimos anos, debatemos muitos temas coletivos. Em alguns momentos, abrimos mão da nossa individualidade pelo coletivo. Mas dá para ser generoso e entender as vivências de cada um também. É um sonho meu. Como você vê no livro, tenho muitas utopias. Estou aqui atirando para elas porque só o sonho não basta.
Tenho uma tendência de ficar me educando o tempo todo para estar sensível às coisas
No livro, você fala de outras violências do dia a dia, como o transporte lotado, a baixa remuneração, a negação da ciência, o ódio contra as minorias ou até contra as maiorias, a hiper medicação. Por que aceitamos tudo isso?
Quando você faz essas perguntas muito concretas, sai um pouco da minha meta (risos). Acho que nos conscientizamos sobre diversas coisas, mas não é sempre que nos sensibilizamos. Vamos nos anestesiando. Esse, talvez, seja o maior desafio. Como é que nos sensibilizamos diante das coisas? Eu, por ter a vivência que eu tenho em práticas artísticas, curto muito ser pai, escutar muito as crianças, escutar os mais velhos. Tenho uma tendência de ficar me educando o tempo todo para estar sensível às coisas. Nos últimos anos, eu fiz muito uma trajetória de me tornar diretor, de ter feito três filmes, um documentário, um filme pra adolescente etc. E, de repente, agora, vou voltar para o caminho do ator porque tem um lugar aí de contar histórias, de se emocionar com a plateia, de estar no teatro, das escolhas dos filmes que eu quero fazer. Eu estou fazendo uma série agora porque aceitei abrir mão de outra e escolhi por isso, porque quero fazer coisas que sensibilizem as pessoas. A resposta eu não tenho, mas eu tenho uma arma poderosa na comunicação e na arte.
No começo do livro você fala sobre mobilidade social. Diz não acreditar como ela foi possível para você. E fala também sobre combater o classismo. Como fez para não virar um classista?
Eu não tenho como confiar. Minha família está na vida real. Ainda faço parte de uma família redistributiva. Não dá muito para acumular dinheiro, porque você, felizmente, tem a oportunidade de colaborar a família. Então, não é nem uma opção (ser classista).
Você também critica os governantes que ficam longe do povo. Seu trabalho como artista o faz ficar mais perto das pessoas, do povo?
É o que eu penso. É claro que com o acesso a bens e valores que eu tenho, em algum momento você vive uma vida que é uma bolha. Eu não posso negar. Eu tenho momentos de bolha. A escola em que meus filhos estudam não é a escola que todos os jovens estudam. Os restaurantes que frequento não são lugares que as pessoas podem ir quando quiserem. Vou te dizer uma coisa: essa foi uma das questões do burnout. Fui criado numa casa com 19 crianças. A casa da minha tia vó, Elenita. Alguns eram primos, outros eram crianças que algum vizinho precisava deixar lá. Tinha quintal no qual nos divertíamos. Estava ali no coletivo. E dividindo as coisas. E tendo que ser solidário. Porque naquela casa, com todo mundo que passou ali, era esse o exercício de vida. Eu saio de lá, vou fazer teatro de grupo, teatro popular de grupo. Era essa maneira de criar os espetáculos. É um hábito. Eu vou ascendendo socialmente, mas isso permanece. Eu ouvia o problema de alguém, e eu absorvia tudo como se fosse meu. Eu sentia na pele. Eu não era somente solidário. Eu passava a noite sem sono: “Amanhã, tenho que dar um conselho para um amigo. Poxa, aquela amiga perdeu emprego por não sei o que”. Eu não estava conseguindo ser só solidário. Esse é o lado que me provocou a doença. Hoje em dia, depois do tratamento, entendi que, claro, posso ser solidário. Eu posso colaborar com as pessoas. Mas eu não posso trazer tanto assim, ironicamente, para a minha pele. Eu preciso estar forte também para conseguir colaborar com os outros.
Eu acho que linguagem é tipo um patrimônio
Seus personagens na TV ou no cinema também podem trazer as reflexões que você apresenta no livro? É possível fazer isso?
Eu tenho uma alegria de ter tantas coisas lindas, em tons variados. O Mister Brown, que era uma série hiper popular de humor, tocava as pessoas nesse lugar. (A novela) Lado a lado, falava de uma parte da história do Brasil importantíssima. E foram feitas na televisão. Quando eu dirigi o Falas Negras, o primeiro que a Globo fez, inclusive, que era no contexto histórico, teve uma audiência que me surpreendeu. E até hoje, de vez em quando, eu vejo alguém compartilhando um trecho dele. Eu acho que a televisão é um veículo importante de mensagem. Mas, refletimos sempre: qual é o tom? Qual é a linguagem ideal? De qual maneira vamos fazer isso? Porque é um público mais amplo, de idades variadas. Pensar em uma linguagem para atingir as pessoas me seduz profundamente. O meu setor tem pensado pouco. A turma avalia muito o algoritmo, o que já é um problema. Se você avalia o algoritmo para fazer o próximos projeto, você já está atrasado. Porque o algoritmo te diz o que é que foi a tendência, o que foi o sucesso. Falam em algoritmos, mas não em linguagem. Como é que sensibilizamos as pessoas? Como vai ser a fotografia? Qual é o tipo de elenco que você vai botar? Os diálogos? Eu sou seduzidíssimo por isso. Tanto é que eu fico tentando, brincando, e cada livro tem uma linguagem diferente. Eu acho que linguagem é tipo um patrimônio.
No fim do livro você escreve que nós somos os donos do País. Como, então, unir as pessoas em torno dele?
Quem vai fazer esse livro? Esse livro é o de 1 trilhão de dólares! Estou fazendo a minha parte. Estamos com incapacidade de comunicação e de mediação para criarmos um projeto coletivo. Essa é a minha pergunta no fim do livro. Faço um futuro imaginado. Eu crio uma ficção distópica para tempos utópicos, porque também tenho essa pergunta. Estou aqui tentando, com o meu trabalho, com as oportunidades que tenho, facilitar de alguma maneira. Não sei se conseguirei.
Vai escrever o terceiro livro dessa série?
Não, não estou escrevendo. Estou escrevendo agora uma ficção. Nunca consegui terminar uma ficção para adulto. Já fiz para adolescente e para criança. E, agora, estou me obrigando a entender como crio uma linguagem para fazer uma ficção para adulto. Talvez eu não tenha esse talento e o texto fique guardado. E aí, quando eu morrer… Sabe, a pessoa morre, eles acham no computador um texto que é meio ruim, mas dizem: “Vamos publicar”.

Na Nossa Pele – Continuando a Conversa
- Autor: Lázaro Ramos
- Editora: Objetiva (128 págs.; R$ 69,90; R$ 29,90 o e-book)