De Porto Alegre, onde vivia, um octogenário escritor gaúcho comemorava um prêmio recebido em São Paulo. Procurado pelo Estadão para comentar a vitória na categoria Grande Prêmio da Crítica de 1979, da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), Dyonelio Machado (1895-1985) aproveitou para falar sobre o praticamente incompreendido romance O Louco do Cati.
Foi somente no ano daquela premiação que o autor permitiu uma reedição do livro, originalmente publicado em 1942 pela prestigiada editora Globo, da capital gaúcha. Ele disse ao repórter deste jornal, em texto publicado em janeiro de 1980: “Fui violentamente criticado quando lancei O Louco do Cati e até não entendi direito aquela reação à obra que eu concebera com carinho e imaginava representar alguma coisa em literatura.”
O escritor não se sentia imune às consequências da crítica negativa. “Disseram de tudo contra o livro e contra mim. Tanto assim que passei mais de 30 anos me negando a permitir a reedição do livro, com medo de que todas aquelas críticas voltassem novamente”, acrescentou.
Agora, O Louco do Cati volta a circular entre os leitores brasileiros após ganhar uma nova edição pela Todavia. A editora já havia republicado outro clássico do autor, Os Ratos, em 2022. Lançado em 1935, Os Ratos segue uma história que se passa em 24h. Nele, o funcionário público Naziazeno Barbosa tem apenas um dia para conseguir o dinheiro para quitar a dívida com o leiteiro.
O escritor Mário de Andrade chegou a comparar os dois romances, que são muito diferentes em forma e conteúdo. Em carta, Andrade deixa claro que já havia lido ambos, mas que acabava de reler Os Ratos e releria na sequência O Louco do Cati. Por isso, agradecia antecipadamente “a inquietação em que vou ficar, a espécie de dor que vou ter”.
“Que impressão estragosamente profunda esse livro me causou”, disse sobre O Louco do Cati. E compara: “Os Ratos serão mais perfeitos como unidade, equilíbrio, concepção, nenhum desperdício. Mas O Louco do Cati morde e marca, preciso reler”. Os Ratos, vale lembrar, recebeu em 1935 o prêmio Machado de Assis. O autor soube disso na prisão, no Rio de Janeiro, por suposto envolvimento com a Intentona Comunista.
Um dos motivos que fez com que O Louco do Cati enfrentasse críticas negativas, como relembrou Dyonelio ao vencer o prêmio da APCA, era o contexto político da época em que foi lançado. Sob a vigilância da Getúlio Vargas, Dyonelio narrou inúmeros abusos de autoridade durante a aventura dos personagens. O autor, entretanto, nunca citou Vargas ou fez alusão direta ao regime. Porém, uma atmosfera de opressão, que lembra os anos duros da ditadura do Estado Novo (1937-1945), persegue o protagonista.
Ao Estadão, quando repercutia o prêmio da APCA, Dyonelio chegou a negar que o livro tenha sido escrito para criticar o Estado Novo. “Nenhuma ditadura merece ser destacada num livro de ficção”, disse na ocasião. O fato é que o escritor também era comunista e chegou a ser deputado estadual no Rio Grande do Sul pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro) — que logo seria cassado.
Psiquiatria e medicina
O engajamento político de Dyonelio na vida adulta pode ser explicado também pela precoce consciência de classe. Nascido em Quaraí, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, órfão de pai, aos oito anos ajudava a sustentar a família vendendo bilhetes de loteria. Aos doze, já trabalhava em um jornal como servente. Aos 16 anos, fundou o primeiro de vários jornais de denúncia que ajudaria a erguer.
O escritor se mudou para Porto Alegre para estudar, e se formou em medicina. O médico optou pela psiquiatria e, no Rio de Janeiro, fez sua especialização. Ele atuou à frente do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, por trinta anos. Sua biografia conta que atendia pacientes que o procuravam fora do hospital sem cobrar nada.
Em O Louco do Cati, um personagem — médico tal qual o autor — prefere não diagnosticar o protagonista como louco. A bordo de um navio, uma mulher curiosa pergunta: “Então um médico não pode dizer assim se um homem é louco ou não?”. E o médico responde: “É o único que não pode”.
Dyonelio emprestava seu conhecimento de psiquiatra ao personagem médico, evitando diagnosticar loucura em pessoas com questões de saúde mental e traumas por violência, como o caso do protagonista.
O Louco do Cati
O romance pode ser lido através de diferentes chaves. A obra é tanto um romance de estrada, com os personagens em deslocamento em busca de redenção; uma denúncia da opressão, mesmo que o autor tenha negado; e um tratado sobre o duplo, uma vez que o louco do Cati e o personagem Norberto muitas vezes funcionam como um espelho, com Norberto dando voz e ação ao protagonista.
É na página 237 do livro que o narrador esclarece ao leitor, eventualmente desavisado, que o Cati era uma prisão de um quartel na fronteira com o Uruguai. “Eu conheci esse Cati. Quero dizer: o lugar chamado Cati. Fica no município de Santana [do Livramento], no rio Grande. Perto da fronteira com o Estado Oriental. Ele contou então à mulher muita coisa que sabia: os horrores, as torturas, as perseguições, os degolamentos. O povo sofria muito com esse lugar — rematou”.
O lugar, aliás, seria próximo de onde Dyonelio nasceu. O protagonista, que não tem seu nome revelado, é nomeado por sua suposta loucura e pelo local que a teria causado. A obra começa com um grupo de amigos planejando uma viagem “bate e volta” de Porto Alegre ao litoral. A eles se junta um desconhecido, o “louco”. Todo esse começo lembra o conto Viaje Hacia el Mar, do uruguaio Juan Jose Morosoli, publicado em 1952, dez anos depois do romance;
Porém, diferentemente do conto, cujo ápice é a chegada ao mar, no livro de Dyonelio a aventura começa com a chegada ao litoral gaúcho. Dois integrantes do grupo decidem seguir viagem, passando pelo litoral catarinense, paulista até o Rio de Janeiro. O roteiro da volta será distinto e culmina com a redenção epifânica e animalesca do protagonista.

O que se sabe sobre o personagem principal é por via indireta, principalmente através do amigo Norberto. É sobretudo por meio dele sabemos o que o “louco” come, veste e fala. O protagonista é como um sujeito oculto de uma frase. O resultado é inovador do ponto de vista da forma literária e pode causar estranhamento a leitores menos proficientes justamente pelo efeito de estranhamento. Esta é, porém, uma das riquezas do livro. Um dos destaques da edição é posfácio de Camila von Holdefer, que costura e amarra as pontas do enredo para leitores de uma obra desafiadora.
Em 2025, comemoram-se os 130 anos de nascimento de Dyonelio e 40 anos de sua morte. O Louco do Cati traz reflexões sobre a condição humana que importam não apenas ao ontem, mas ao hoje. Sua publicação chega em boa hora.
O Louco do Cati
- Autor: Dyonelio Machado
- Editora: Todavia (320 págs.; R$ 89,90 | E-book: R$ 69,90)