Apenas as mais belas palavras, aqui de colegas de trabalho e pessoas próximas, podem descrever uma mulher indescritível Esta matéria foi publicada na edição 127 da Vogue Brasil, em 1986.
Fernanda é tudo que sobrou do que sempre me ensinaram. A sombra dos quarenta graus à sombra. Procurem seus gestos no vocabulário — estão todos lá. Pois sua vida é um palco iluminado. À direita, as gambiarras do perfeccionismo. À esquerda, os praticáveis do impossível. Em cima, o urdimento geral de uma tentativa de enredo a ser refeita todas as noites, toda a vida. Atrás dos bastidores, o mistério essencial. Embaixo, o portão que torna viáveis os mágicos e onde, faz tanto tempo, enterramos o ponto. Gênio da espécie teatrônicus fanactucus, é o tal talento de Fernanda, que nunca consegui saber se é bonita. É: Mas pode ser que esteja só representando. Da ambiguidade da arte que pratica, fico pensando se é mais difícil ser sincera na vida depois de todas as mentiras de ribalta ou ser autêntica no palco depois de tantas perfídias da existência. Chamam-na de atriz de fôlego; e é de reparar que nem respira. Já que há o risco do abismo na exibição de cada noite. A expressão corporal adquiriu nela a força do advérbio. Por isso, a palavra vem multifacetada. Fer-nan-da; três sílabas mágicas como as cinco de fe-li-ci-da-de e sempre a pomos onde estamos. Tem um risco que sublima, um olhar que diagrama e uma vaga assessoria do encantado. Pois crê em Deus, ainda que não lhe dê excessiva intimidade. Se um dia Ele não aparecer, ela veste o manto e faz Seu papel.
Magra, branca, fugida, tem a coragem da ossatura e o prolongamento moral que o espírito empresta aos fêmures e aos cúbitos. São poucos os que, como ela, conseguiram chegar aos 18 anos em um pouco mais de 40. E, como recordação da infância, ainda pula amarelinha — nas adjacências. Corda, porém, só em casa de enforcado. Em Alagoas, meio século atrás, seria Maria Bonita. Em Rouen, há 400 anos, teria convencido Joana d’Arc a escapar da fogueira. Veste-se como quem não vai a lugar nenhum e tem toda razão — o acontecimento é ela. Parca de excessos, é perdulária em antonímias. Sua cor predileta é a cortesia. E sua única ambição a ubiquidade. (Do Engenho de Dentro ainda carrega um ligeiro sotaque.) Se fosse homem, seria mulher. Esmiúça os contrastes e aceita ternamente as vacilações do que abdicam. Cínica diante da glória, resiste sempre a apoteoses do outrora quinto ato. Mas seu ato de viver não tem paredes: há sempre gente assistindo à sua multiplicidade. Tem certas dúvidas. Nenhuma delas certa. É corriqueira todo dia, costumeira quase todos os dias, ocasional nem sempre, e mítica só pra nós que lhe conhecemos a (quinta) essência. Psicanalista e confessor sobe no palco, desnuda o inconsciente coletivo e redime uma arte há dois mil e quatrocentos anos moribunda. E eis seu segredo: crê no texto, tem fé na direção, comunga com a plateia e sabe que no dia do Juízo Final os críticos serão todos perdoados.
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Seu rosto guarda recordações que a memória esqueceu. Reparem só: às vezes seu sorriso chega tarde para uma expressão de alegria. Ou sai antes do fim da euforia, dublagem existencial errada que deixa notarmos os arcanos de sua melancolia. Que dói, eu sei, aqui assim, lá nela. Dois seios, como em toda mulher. Ânsia de muitos seios, como a Loba de Roma. Sem não ser o que é. Pode ser outra coisa, na saudade antibovarista de uma vida total. Explicando melhor: tomou parte pelo todo, sendo todo impossível. Explicando ainda mais: fez da fatia do bolo e comeu-o inteiro, deixando porém um pedaço de sonho para todo o mundo.
Já interpretou Mirandolina, “Madame” Warren e Arlete Pinheiro. Se fez Montenegro, se casou com Torres e, do alto dessa pirâmide, há 40 peças os dois se contemplam. Desgarrada da geração em que nasceu, flutua acima daquele em que vive, nessa terra de ninguém em que é perigoso estar só sem estar mal acompanhado: diz-me quem és e eu te direi com quem não andas. Aplaudida em toda parte, não regateia aplausos ao público que a frequenta. E busca, nos desvãos dessa troca, a verdade da glória. Que não fica, não eleva, não honra nem consola. E uma parte da qual pode ser até que esteja na bilheteria. Crê no perigo da ausência, que nunca tem razão, por isso sempre está a sempre fica — ou deixa alguém de muita confiança. Sua última opção é estar com vida quando quase ninguém mais respira. Mas já tem tudo arrumando para o Grande Dia. Algumas decisões: a de morrer em pé, como um batavo. A de brincar de Deus, *como um bandido. A de apostar no destino, dando ao gato seis vidas de vantagem. E, depois do final, poder escutar, no silêncio e no escuro, o último espectador que se afasta nas aléias desertas.
(Trecho do Livro Diário da Nova República, editado pela L&PM Editora)
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AMOR DE CAMARIM — Renata Sorrah
Na primeira vez que trabalhei com Fernanda, fomos rivais, no “É” de Millôr Fernandes. Na peça, éramos apaixonadas pelo mesmo homem. Disputávamos o adorável Fernando. Enquanto isso, no camarim, Fernanda me ensinava a gostar de Maria Callas e outras coisas lindas da vida. Minha paixão real começou aí.
Anos mais tarde, nos tornamos amantes no palco. Ela como Petra, uma mulher fascinante, ávida de amor. Dominadora. Eu como Karin, ambiciosa e amoral. Foram dois anos de uma relação intensa e instigante no palco. No camarim, Fernanda, com uma delicadeza sem limites, me ajuda a enfrentar inteira o final de um casamento.
Que profissão linda essa nossa! Se tivéssemos vivido essas duas relações de rivais e amantes na vida real, certamente teríamos saído machucadas e distanciadas. Mas ao contrário, essas duas relações vividas tão intensa e lealmente no palco só fizeram enriquecer e aumentar o meu amor por Fernanda.
Na estreia da peça Grande e Pequeno, ela me escreveu: “Força, força, força! É assim que as parteiras gritam quando a gente põe alguém no mundo”. Só queria te dizer, Fernanda, que o filho nasceu lindo e que você é a madrinha.
Fernanda Montenegro por Millôr Fernandes (Revista Vogue Edição 127, 1986)
Vogue Brasil
MINHA MÃE (NOSSA DAMA) — Fernanda Torres
Certa feita, numa dessas manhãs conturbadas lá de casa, com cachorro latindo, telefone tocando, lixeiro na porta, dinheiro para feira… Eu espiava minha mãe (Nossa Dama) sentada na sua escrivaninha, com sua lista de afazeres do dia, telefonando pra uma outra lista interminável de pessoas e se empenhando na tarefa, como numa obra de Shakespeare, quando de repente ela se volta vitoriosa para mim e fuzila: “Sabe, minha filha, às vezes penso que eu podia ter sido uma excelente secretária bilíngue”.
Disse isso com um certo saudosismo do que podia ter sido e não foi. Depois, pensando melhor, arrematou: “Aliás, acho que eu faria bem qualquer coisa na vida…”.
Ah, D. Arlette, a vida é isso que se vê! Ainda bem que você escolheu o teatro e ainda bem que eu sou sua filha (outra tarefa que você realiza com excepcional talento, empenho e alegria). Só lamento por esses executivos do meu Brasil que perderam nas suas antessalas essa capacidade impressionante de se virar em mil. D. Arlette é o melhor exemplo que eu conheço de se ter o olho maior que barriga — e sem metáforas!
Fernanda Montenegro por Millôr Fernandes (Revista Vogue Edição 127, 1986)
Vogue Brasil
FERNANDA, a ladra — Daniel Filho
Vocês já prestaram atenção na Fernanda prestando atenção? E quando ela faz uma pausa na cena? Antes ou no meio de uma fala?
Como todo mundo, eu já a vi representar “n” vezes, mas na novela Brilhante, que eu dirigi, vivi a sensação de tê-la só pra mim. Dirigir Fernanda é como suportar as tentações mais convidativas, sem nem Deus ou o Diabo para te ajudar. É só você e aquele magnetismo em cima de você. “Vade retro, talento-ladrão!” Perdão, sei que não estou sendo claro, mas as palavras vêm soltas na cabeça como quando nos lembramos de uma grande aventura e as emoções revivem em explosões em nosso arfante peito. Bom, respiremos fundo, tomemos um copo de cerveja e deixem-me contar-lhes o que esta mulher me fez. Apenas uma das muitas. A cena tinha 18 páginas (mais da metade de um capítulo) e duas personagens: ela e outra. Por motivos éticos não direi o nome da outra. O texto era um duelo de falas e ações entre as duas. Conforme a ideia do autor, este jogo deveria terminar empatado. Assim estava escrito. E era o meu dever, como diretor, manter o equilíbrio dramático. Quando começamos a ensaiar, Fernanda, com o enorme texto na mão, nos fala da maneira como ela vê a cena, do comportamento que ela acha que a personagem deve ter. É fantástico. Ela está fazendo o seu trabalho com profundidade. Dizer das emoções e gestos é também uma das formas de fixar o texto, ainda inseguro. Correto. Mas eu já estou fascinado por ela. Ela é o centro da cena. Errado. O texto diz empate. Eu sou o juiz. Se eu tendenciar a atenção, estarei contando mal a história. Num segundo ensaio, mais seguro, a outra atriz começa a dizer com força e talento os seus monólogos. Fernanda fica atenta. Não mexe um músculo. A atriz desce mais, diante do suporte que Fernanda lhe dá. Ela está parada, ouvindo, com os olhos brilhando. Dentro deles, ideias devem estar passando loucamente… Estão vendo? Lá estou eu prestando atenção na atenção da Fernanda.
CASTAMENTE — Paulo Francis
O primeiro artigo assinado que fiz sobre teatro, em 1957, comparava Cacilda Becker a Sarah Bernhardt e Fernanda Montenegro a Eleonora Duse, como foram vistas por Bernard Shaw. Parafraseei. Cacilda, de saudosa memória, um clichê que não cansa, era sempre ela própria, mas com momentos de gênio criador únicos em nosso teatro. Basta lembrar quando, dopada de heroína em Longa Jornada de um Dia para Dentro de Noite, de O’Neil, procurava a companhia da empregada (Kleber Fernandes). A solidão humana estava ali, em síntese, para nós, felizardos, que estávamos vivos para vê-la. Já Fernanda, como Duse, faz a personagem completa, seja a solteirona vocacional de A Profissão da Sra. Warren, de Shaw, aos Feydeaus hilariantes e aos Pirandellos a que ela deu vida em Vestir os Nus, em tantas peças que até me é difícil lembrá-las. Lembro-me de uma noite, de que Fernanda não sabe, que discuti horas com minha velha amiga Bárbara Heliodora, também crítica de teatro, sobre um prêmio, que Fernanda terminou levando depois que dei uma de deputado baiano, mais uma vez até deputado baiano acerta (…), dizendo que precisávamos preservar este, Fernanda, o maior patrimônio nacional do nosso teatro. Ela é tão bacana como pessoa que deve esconder horrores, diz meu ceticismo. Não, talvez seja a exceção que confirma a regra. Conhecê-la é amá-la. Castamente, castamente. Vê-la no palco é garantir que pode haver teatro no Brasil.
Fernanda Montenegro por Millôr Fernandes (Revista Vogue Edição 127, 1986)
Vogue Brasil
LUZ, CÂMARA, GUERRA — Paulo Autran
Ah! aqueles olhos! que olhos! expressam tudo!
Lembro-me da fixidez de seu olhar em A Volta ao Lar, de Pinter. Praticamente só com essa característica: olhar fixo, ela desenhou deslumbrantemente sua enigmática, ambígua e sensual personagem! Na plateia, maravilhado, eu não tirava os olhos dos olhos da Fernanda.
Os colegas me contavam: Fernanda trabalha demais! Ensaia sem parar e no fim do horário de ensaio está sempre pronta a repetir tudo com o mesmo entusiasmo!
Então era isso: olhos, talento e trabalho! Aí tive oportunidade de conhecê-la pessoalmente, de conversar com ela.
As observações de Fernanda! Seus pontos de vista sempre muito pessoais, antidemagógicos! Seu senso de humor penetrante, cristalino, agudo! Sua capacidade de rir! Sensibilidade e inteligência transbordantes!
Fernanda dosa com sabedoria o bom senso, sentido prático e comercial da carreira com uma paixão interior, violenta e irracional. Controla essas contradições aparentes como a grande atriz que é.
Boa colega. Admirada por todos. Amada por todos.
Abençoada Fernanda!
Luz no palco!
A DAMA DA LOUCURA — Arnaldo Jabor
O que eu acho genial na Fernanda é que ela toca sempre nas teclas pretas. Ela nunca está na escala maior. Ela fala sempre em sustenidos e bemóis. Ela é uma atriz que sabe que o texto não é para ser dito, mas para ser codificado e aparecer a música inconsciente que está por trás. A Fernanda parodia sempre a profissão de atriz, é uma proto-atriz / meta-atriz. Mesmo que ela queira, não consegue ser realista. Assim como a Sônia Braga é o desespero sexual da mulher brasileira, a Fernanda é a loucura da dona de casa. Ela é a Sarah Bernhardt trancada na cozinha de avental e na sala de jantar. Ela é a loucura da mulher média brasileira. Por isso ela repercute tanto na cabeça das pessoas, como uma flauta de denúncia, uma Clarice Lispector gritando ou rindo nos palcos. Fernanda sabe que ser atriz não é interpretar textos, mas fazer jorrar palavras que as pessoas não sabem dizer. E fazer gestos que todos querem fazer, mas não sabem. Os atores são grandes quando expressam a nossa loucura — fora disso é apenas teatro. O único perigo que ronda a Fernanda é que a transformem na grande dama do teatro brasileiro.
Fernanda Montenegro por Millôr Fernandes (Revista Vogue Edição 127, 1986)
Vogue Brasil
ARLETTE FERNANDA — Fernando Torres
É um susto!
Mulher, atriz, dona de uma objetividade e uma obstinação raras, capaz de manipular a fantasia a ponto de — no dizer de um grande diretor — transcender.
Esta libriana convive com as suas contradições e as da sociedade e é capaz de, sempre, dialeticamente, conseguir, de duas forças, uma resultante inesperada e justa.
Fernanda Montenegro por Millôr Fernandes (Revista Vogue Edição 127, 1986)
Vogue Brasil
MINHA MÃE (MINHA VELHA) — Cláudio Torres
Das coisas que gostaria de dizer sobre minha mãe, a que me parece mais propícia é que ela é uma mulher que, brava e inteligentemente, luta contra a tentação de ser maior que ela mesma.
Amo, reverencio e torço pela sabedoria da minha velha.
Fernanda é tudo que sobrou do que sempre me ensinaram. A sombra dos quarenta graus à sombra. Procurem seus gestos no vocabulário — estão todos lá. Pois sua vida é um palco iluminado. À direita, as gambiarras do perfeccionismo. À esquerda, os praticáveis do impossível. Em cima, o urdimento geral de uma tentativa de enredo a ser refeita todas as noites, toda a vida. Atrás dos bastidores, o mistério essencial. Embaixo, o portão que torna viáveis os mágicos e onde, faz tanto tempo, enterramos o ponto. Gênio da espécie teatrônicus fanactucus, é o tal talento de Fernanda, que nunca consegui saber se é bonita. É: Mas pode ser que esteja só representando. Da ambiguidade da arte que pratica, fico pensando se é mais difícil ser sincera na vida depois de todas as mentiras de ribalta ou ser autêntica no palco depois de tantas perfídias da existência. Chamam-na de atriz de fôlego; e é de reparar que nem respira. Já que há o risco do abismo na exibição de cada noite. A expressão corporal adquiriu nela a força do advérbio. Por isso, a palavra vem multifacetada. Fer-nan-da; três sílabas mágicas como as cinco de fe-li-ci-da-de e sempre a pomos onde estamos. Tem um risco que sublima, um olhar que diagrama e uma vaga assessoria do encantado. Pois crê em Deus, ainda que não lhe dê excessiva intimidade. Se um dia Ele não aparecer, ela veste o manto e faz Seu papel.
Magra, branca, fugida, tem a coragem da ossatura e o prolongamento moral que o espírito empresta aos fêmures e aos cúbitos. São poucos os que, como ela, conseguiram chegar aos 18 anos em um pouco mais de 40. E, como recordação da infância, ainda pula amarelinha — nas adjacências. Corda, porém, só em casa de enforcado. Em Alagoas, meio século atrás, seria Maria Bonita. Em Rouen, há 400 anos, teria convencido Joana d’Arc a escapar da fogueira. Veste-se como quem não vai a lugar nenhum e tem toda razão — o acontecimento é ela. Parca de excessos, é perdulária em antonímias. Sua cor predileta é a cortesia. E sua única ambição a ubiquidade. (Do Engenho de Dentro ainda carrega um ligeiro sotaque.) Se fosse homem, seria mulher. Esmiúça os contrastes e aceita ternamente as vacilações do que abdicam. Cínica diante da glória, resiste sempre a apoteoses do outrora quinto ato. Mas seu ato de viver não tem paredes: há sempre gente assistindo à sua multiplicidade. Tem certas dúvidas. Nenhuma delas certa. É corriqueira todo dia, costumeira quase todos os dias, ocasional nem sempre, e mítica só pra nós que lhe conhecemos a (quinta) essência. Psicanalista e confessor sobe no palco, desnuda o inconsciente coletivo e redime uma arte há dois mil e quatrocentos anos moribunda. E eis seu segredo: crê no texto, tem fé na direção, comunga com a plateia e sabe que no dia do Juízo Final os críticos serão todos perdoados.
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Seu rosto guarda recordações que a memória esqueceu. Reparem só: às vezes seu sorriso chega tarde para uma expressão de alegria. Ou sai antes do fim da euforia, dublagem existencial errada que deixa notarmos os arcanos de sua melancolia. Que dói, eu sei, aqui assim, lá nela. Dois seios, como em toda mulher. Ânsia de muitos seios, como a Loba de Roma. Sem não ser o que é. Pode ser outra coisa, na saudade antibovarista de uma vida total. Explicando melhor: tomou parte pelo todo, sendo todo impossível. Explicando ainda mais: fez da fatia do bolo e comeu-o inteiro, deixando porém um pedaço de sonho para todo o mundo.
Já interpretou Mirandolina, “Madame” Warren e Arlete Pinheiro. Se fez Montenegro, se casou com Torres e, do alto dessa pirâmide, há 40 peças os dois se contemplam. Desgarrada da geração em que nasceu, flutua acima daquele em que vive, nessa terra de ninguém em que é perigoso estar só sem estar mal acompanhado: diz-me quem és e eu te direi com quem não andas. Aplaudida em toda parte, não regateia aplausos ao público que a frequenta. E busca, nos desvãos dessa troca, a verdade da glória. Que não fica, não eleva, não honra nem consola. E uma parte da qual pode ser até que esteja na bilheteria. Crê no perigo da ausência, que nunca tem razão, por isso sempre está a sempre fica — ou deixa alguém de muita confiança. Sua última opção é estar com vida quando quase ninguém mais respira. Mas já tem tudo arrumando para o Grande Dia. Algumas decisões: a de morrer em pé, como um batavo. A de brincar de Deus, *como um bandido. A de apostar no destino, dando ao gato seis vidas de vantagem. E, depois do final, poder escutar, no silêncio e no escuro, o último espectador que se afasta nas aléias desertas.
(Trecho do Livro Diário da Nova República, editado pela L&PM Editora)
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AMOR DE CAMARIM — Renata Sorrah
Na primeira vez que trabalhei com Fernanda, fomos rivais, no “É” de Millôr Fernandes. Na peça, éramos apaixonadas pelo mesmo homem. Disputávamos o adorável Fernando. Enquanto isso, no camarim, Fernanda me ensinava a gostar de Maria Callas e outras coisas lindas da vida. Minha paixão real começou aí.
Anos mais tarde, nos tornamos amantes no palco. Ela como Petra, uma mulher fascinante, ávida de amor. Dominadora. Eu como Karin, ambiciosa e amoral. Foram dois anos de uma relação intensa e instigante no palco. No camarim, Fernanda, com uma delicadeza sem limites, me ajuda a enfrentar inteira o final de um casamento.
Que profissão linda essa nossa! Se tivéssemos vivido essas duas relações de rivais e amantes na vida real, certamente teríamos saído machucadas e distanciadas. Mas ao contrário, essas duas relações vividas tão intensa e lealmente no palco só fizeram enriquecer e aumentar o meu amor por Fernanda.
Na estreia da peça Grande e Pequeno, ela me escreveu: “Força, força, força! É assim que as parteiras gritam quando a gente põe alguém no mundo”. Só queria te dizer, Fernanda, que o filho nasceu lindo e que você é a madrinha.
Fernanda Montenegro por Millôr Fernandes (Revista Vogue Edição 127, 1986)
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MINHA MÃE (NOSSA DAMA) — Fernanda Torres
Certa feita, numa dessas manhãs conturbadas lá de casa, com cachorro latindo, telefone tocando, lixeiro na porta, dinheiro para feira… Eu espiava minha mãe (Nossa Dama) sentada na sua escrivaninha, com sua lista de afazeres do dia, telefonando pra uma outra lista interminável de pessoas e se empenhando na tarefa, como numa obra de Shakespeare, quando de repente ela se volta vitoriosa para mim e fuzila: “Sabe, minha filha, às vezes penso que eu podia ter sido uma excelente secretária bilíngue”.
Disse isso com um certo saudosismo do que podia ter sido e não foi. Depois, pensando melhor, arrematou: “Aliás, acho que eu faria bem qualquer coisa na vida…”.
Ah, D. Arlette, a vida é isso que se vê! Ainda bem que você escolheu o teatro e ainda bem que eu sou sua filha (outra tarefa que você realiza com excepcional talento, empenho e alegria). Só lamento por esses executivos do meu Brasil que perderam nas suas antessalas essa capacidade impressionante de se virar em mil. D. Arlette é o melhor exemplo que eu conheço de se ter o olho maior que barriga — e sem metáforas!
Fernanda Montenegro por Millôr Fernandes (Revista Vogue Edição 127, 1986)
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FERNANDA, a ladra — Daniel Filho
Vocês já prestaram atenção na Fernanda prestando atenção? E quando ela faz uma pausa na cena? Antes ou no meio de uma fala?
Como todo mundo, eu já a vi representar “n” vezes, mas na novela Brilhante, que eu dirigi, vivi a sensação de tê-la só pra mim. Dirigir Fernanda é como suportar as tentações mais convidativas, sem nem Deus ou o Diabo para te ajudar. É só você e aquele magnetismo em cima de você. “Vade retro, talento-ladrão!” Perdão, sei que não estou sendo claro, mas as palavras vêm soltas na cabeça como quando nos lembramos de uma grande aventura e as emoções revivem em explosões em nosso arfante peito. Bom, respiremos fundo, tomemos um copo de cerveja e deixem-me contar-lhes o que esta mulher me fez. Apenas uma das muitas. A cena tinha 18 páginas (mais da metade de um capítulo) e duas personagens: ela e outra. Por motivos éticos não direi o nome da outra. O texto era um duelo de falas e ações entre as duas. Conforme a ideia do autor, este jogo deveria terminar empatado. Assim estava escrito. E era o meu dever, como diretor, manter o equilíbrio dramático. Quando começamos a ensaiar, Fernanda, com o enorme texto na mão, nos fala da maneira como ela vê a cena, do comportamento que ela acha que a personagem deve ter. É fantástico. Ela está fazendo o seu trabalho com profundidade. Dizer das emoções e gestos é também uma das formas de fixar o texto, ainda inseguro. Correto. Mas eu já estou fascinado por ela. Ela é o centro da cena. Errado. O texto diz empate. Eu sou o juiz. Se eu tendenciar a atenção, estarei contando mal a história. Num segundo ensaio, mais seguro, a outra atriz começa a dizer com força e talento os seus monólogos. Fernanda fica atenta. Não mexe um músculo. A atriz desce mais, diante do suporte que Fernanda lhe dá. Ela está parada, ouvindo, com os olhos brilhando. Dentro deles, ideias devem estar passando loucamente… Estão vendo? Lá estou eu prestando atenção na atenção da Fernanda.
CASTAMENTE — Paulo Francis
O primeiro artigo assinado que fiz sobre teatro, em 1957, comparava Cacilda Becker a Sarah Bernhardt e Fernanda Montenegro a Eleonora Duse, como foram vistas por Bernard Shaw. Parafraseei. Cacilda, de saudosa memória, um clichê que não cansa, era sempre ela própria, mas com momentos de gênio criador únicos em nosso teatro. Basta lembrar quando, dopada de heroína em Longa Jornada de um Dia para Dentro de Noite, de O’Neil, procurava a companhia da empregada (Kleber Fernandes). A solidão humana estava ali, em síntese, para nós, felizardos, que estávamos vivos para vê-la. Já Fernanda, como Duse, faz a personagem completa, seja a solteirona vocacional de A Profissão da Sra. Warren, de Shaw, aos Feydeaus hilariantes e aos Pirandellos a que ela deu vida em Vestir os Nus, em tantas peças que até me é difícil lembrá-las. Lembro-me de uma noite, de que Fernanda não sabe, que discuti horas com minha velha amiga Bárbara Heliodora, também crítica de teatro, sobre um prêmio, que Fernanda terminou levando depois que dei uma de deputado baiano, mais uma vez até deputado baiano acerta (…), dizendo que precisávamos preservar este, Fernanda, o maior patrimônio nacional do nosso teatro. Ela é tão bacana como pessoa que deve esconder horrores, diz meu ceticismo. Não, talvez seja a exceção que confirma a regra. Conhecê-la é amá-la. Castamente, castamente. Vê-la no palco é garantir que pode haver teatro no Brasil.
Fernanda Montenegro por Millôr Fernandes (Revista Vogue Edição 127, 1986)
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LUZ, CÂMARA, GUERRA — Paulo Autran
Ah! aqueles olhos! que olhos! expressam tudo!
Lembro-me da fixidez de seu olhar em A Volta ao Lar, de Pinter. Praticamente só com essa característica: olhar fixo, ela desenhou deslumbrantemente sua enigmática, ambígua e sensual personagem! Na plateia, maravilhado, eu não tirava os olhos dos olhos da Fernanda.
Os colegas me contavam: Fernanda trabalha demais! Ensaia sem parar e no fim do horário de ensaio está sempre pronta a repetir tudo com o mesmo entusiasmo!
Então era isso: olhos, talento e trabalho! Aí tive oportunidade de conhecê-la pessoalmente, de conversar com ela.
As observações de Fernanda! Seus pontos de vista sempre muito pessoais, antidemagógicos! Seu senso de humor penetrante, cristalino, agudo! Sua capacidade de rir! Sensibilidade e inteligência transbordantes!
Fernanda dosa com sabedoria o bom senso, sentido prático e comercial da carreira com uma paixão interior, violenta e irracional. Controla essas contradições aparentes como a grande atriz que é.
Boa colega. Admirada por todos. Amada por todos.
Abençoada Fernanda!
Luz no palco!
A DAMA DA LOUCURA — Arnaldo Jabor
O que eu acho genial na Fernanda é que ela toca sempre nas teclas pretas. Ela nunca está na escala maior. Ela fala sempre em sustenidos e bemóis. Ela é uma atriz que sabe que o texto não é para ser dito, mas para ser codificado e aparecer a música inconsciente que está por trás. A Fernanda parodia sempre a profissão de atriz, é uma proto-atriz / meta-atriz. Mesmo que ela queira, não consegue ser realista. Assim como a Sônia Braga é o desespero sexual da mulher brasileira, a Fernanda é a loucura da dona de casa. Ela é a Sarah Bernhardt trancada na cozinha de avental e na sala de jantar. Ela é a loucura da mulher média brasileira. Por isso ela repercute tanto na cabeça das pessoas, como uma flauta de denúncia, uma Clarice Lispector gritando ou rindo nos palcos. Fernanda sabe que ser atriz não é interpretar textos, mas fazer jorrar palavras que as pessoas não sabem dizer. E fazer gestos que todos querem fazer, mas não sabem. Os atores são grandes quando expressam a nossa loucura — fora disso é apenas teatro. O único perigo que ronda a Fernanda é que a transformem na grande dama do teatro brasileiro.
Fernanda Montenegro por Millôr Fernandes (Revista Vogue Edição 127, 1986)
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ARLETTE FERNANDA — Fernando Torres
É um susto!
Mulher, atriz, dona de uma objetividade e uma obstinação raras, capaz de manipular a fantasia a ponto de — no dizer de um grande diretor — transcender.
Esta libriana convive com as suas contradições e as da sociedade e é capaz de, sempre, dialeticamente, conseguir, de duas forças, uma resultante inesperada e justa.
Fernanda Montenegro por Millôr Fernandes (Revista Vogue Edição 127, 1986)
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MINHA MÃE (MINHA VELHA) — Cláudio Torres
Das coisas que gostaria de dizer sobre minha mãe, a que me parece mais propícia é que ela é uma mulher que, brava e inteligentemente, luta contra a tentação de ser maior que ela mesma.
Amo, reverencio e torço pela sabedoria da minha velha.