Audrey Diwan nunca havia assistido ao clássico Emmanuelle quando foi sondada por seus produtores sobre a possibilidade de dirigir uma nova versão da história. Instigada pela curiosidade, a cineasta francesa, premiada com o Leão de Ouro do Festival de Veneza de 2021 pelo excelente O Acontecimento, que trata com firmeza sobre aborto, assistiu a 10 minutos do filme de 1974, dirigido por Just Jaeckin, e desligou.
“Tive a sensação de que claramente eu não era o público-alvo”, confessa a diretora, de passagem pelo Brasil, em entrevista ao Estadão. “Mas li o livro para entender de onde vinha o fenômeno.”
Agora, Diwan propõe fazer dessa história, baseada no livro de Emmanuelle Arsan, algo inteiramente seu. Na década de 1970, o soft porn teve suas bases moldadas no cult erótico estrelado por Sylvia Kristel (1952-2012), que posteriormente originou uma série de derivados e continuações, virou fenômeno no Brasil pelas exibições no Cine Privê, da Band, e pavimentou o caminho de um fascínio global pelo cinema erótico moldado para satisfazer uma determinada figura masculina. Mas, segundo a diretora, faltava espaço para enxergar tudo isso pela ótica feminina.
Foi por isso que ela propôs uma releitura para o novo filme, que ganha exibições no Brasil durante a primeira edição do Festival de Cinema Europeu Imovision.
Na nova trama, portanto, sai o voyeurismo e entra o olhar de uma mulher independente e prática, mas com camadas psicológicas densas e complicadas. Agora, Emmanuelle (Noémie Merlant) é uma inspetora a serviço de uma rede de hotéis, que viaja para Hong Kong para avaliar os serviços do estabelecimento local. Um hóspede misterioso, Kei (Will Sharpe), uma garota de programa, Zelda (Chacha Huang), e a atmosfera vibrante acabam despertando na mulher uma vontade de redescobrir seu próprio desejo, até então escondido e tímido. Com uma protagonista um pouco mais velha cujo desafio é reencontrar o próprio prazer, Audrey propõe uma discussão sobre sexualidade (e frustrações) reais.
“O livro é cheio de velhos clichês sobre sexualidade, mas também é a história de uma garota tentando ter mais prazer”, resume. “Achei que isso era moderno de certa forma, e comecei a pensar no erotismo como uma linguagem cinematográfica. Isso é empolgante, mas não é motivo para fazer um filme. Recusei, e meses depois, estava pensando nessa garota que não sente prazer e comecei a enxergar seu rosto. Liguei para os produtores e falei que mudei de ideia.”
‘Orgasmos não existem por si’
Ao longo do filme, Emmanuelle vai aos poucos tendo sua resistência quebrada e ficando mais interessada em explorar o próprio corpo. Mas, para a diretora, retratar a busca evasiva pelo prazer físico passa por um grande desafio prático: reproduzir, com o maior realismo possível, sensações e reações que não podem soar falsas.

“Usei minhas próprias experiências e as de Noémie”, conta, ao explicar como encontrou o caminho para criar momentos íntimos. “Retratar o orgasmo era uma grande questão. Primeiro porque não dá para retratar todos os [tipos de] orgasmo. Você precisa encontrar o tom certo de um.”
A diretora prossegue revelando os bastidores de uma cena específica do filme em que a protagonista, enfim, encontra prazer.
“Passamos uma noite toda nessa sequência. Estávamos fisicamente exaustas. É complicado porque muitas mulheres fingem, todas nós já fingimos na nossa vida. Então, como retratar algo que se parece com um orgasmo real, fingindo? Depois de 10 horas, estávamos tão exaustas que relaxamos. Algo se quebrou dentro de nós, e ninguém estava no controle. De repente, ela suspira e sorri. E eu pensei: bem, é isso.”
A dificuldade, para a realizadora francesa, também vem de um lugar histórico em que o orgasmo é tradicionalmente retratado como uma glória masculina.
“Já vimos muitos orgasmos ruins em filmes, aquele tipo de orgasmo que só existe para dizer ao homem que ele é bom. Durante muito tempo, orgasmos eram um sinal de que o homem fez um bom trabalho, e não existiam por si. O prazer feminino não era muito um assunto.”
Este, aliás, é um dos motivos por que Emmanuelle se encontra sozinha em muitas das cenas mais íntimas do longa.
“O filme também tenta falar sobre solidão, porque é algo que sinto de forma muito forte atualmente. Na França, há várias pesquisas que dizem que as gerações mais novas não querem fazer sexo, acho que é uma mudança da civilização. Algo muito profundo está acontecendo na nossa sociedade, e [a personagem] precisa se reconectar ao próprio corpo e saber como se cuidar e se amar. É essa solidão que ela finalmente rompe para conseguir ser vulnerável na frente de outra pessoa.”
Prazer artificial, pornografia e vergonha

Ao ambientar o filme em um hotel luxuoso de Hong Kong, Diwan explica que seu objetivo era construir uma justaposição entre as atmosferas frias de ambientes impessoais e a noção moderna de desejo.
“Tudo é classificado para fornecer a melhor experiência para os clientes, para que eles tenham o máximo de prazer com isso. Mas é uma satisfação artificial”, sintetiza. “O capitalismo tenta definir o prazer de uma forma que simplesmente não é realista e, com isso, acaba o matando.”
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Questionada sobre o papel da pornografia na definição dessas noções não realistas, a francesa não hesita.
“Isso vem com a ideia de culpa, e acho que foi o que mudou com a pornografia. Você precisa ter vergonha da sua própria sexualidade porque está lidando com a versão crua, a versão dura dela”, reflete. “Eu queria mostrar a sexualidade pelo ângulo da beleza, e isso é algo que perdemos com a pornografia porque, na maioria das vezes, este não é o objetivo. Não sempre, mas na maioria das vezes. Adicionar beleza é um sinal de que podemos aproveitar nossa sexualidade e não nos sentirmos mal com isso.”
Superando os riscos e abraçando a controvérsia
Reflexiva sobre sua jornada e a recepção do filme, Diwan confessa que encarar a empreitada de dirigir Emmanuelle também foi uma forma de ela superar seus próprios medos e limitações — algo que ela afirma ter conseguido.
“Eu sabia que o filme era arriscado, que poderia ser amado por alguns e odiado por outros. Eu sabia que não poderia ser a mesma experiência que tive com O Acontecimento. Antes de começar, eu precisei ter certeza que concordava com a jornada que seria minha. Tive muito medo, e me senti como a Emmanuelle. Se você quer que algo mude, só precisa pular. Foi o que fiz”, constata, alegando que não considera o cinema um lugar para brigas.
“É o lugar para discussão. A reação das pessoas que vão contra o filme é sempre interessante porque ressalta algo que elas não deveriam estar me falando. Acho que toquei em algo importante para o público mais novo, porque eles realmente gostaram do filme. Eu gosto do lugar da controvérsia.”
Ao se abrir para tal contradição, Diwan admite que até considera sua versão de Emmanuelle feminista, mas não só isso.
“Se o filme é feminista, é porque eu sou feminista. Mas sempre que as pessoas falam sobre o meu olhar e tentam defini-lo como feminista, eu dou um aviso. Se você diz que meu olhar é apenas feminista, você coloca as mulheres em uma caixa. O meu olhar é construído por meio da minha história, minha relação com o mundo, a política, o feminino. Mas ele é complexo. Embora eu seja feminista, não tento fazer filmes feministas, mas sei que no final, eles assim serão, porque se encaixam com as minhas ideias. Não quero que os filmes sejam manifestos, raramente me sinto tocada por filmes do tipo.”