Em uma quinta-feira de 1960, uma ilha na Ásia recebeu uma encomenda inusitada. Além de suprimentos de alimentos e equipamentos mecânicos, a Força Aérea Real do Reino Unido (FAR) entregou também 23 gatos. Já seria um pouco estranho, se não fosse por um detalhe: o delivery foi aéreo.
Isso aconteceu em Bornéu, a terceira maior ilha do planeta que, na época, estava sob controle britânico. Bornéu não faz mais parte da Coroa, mas também não é um país: a maior parte do território é da Indonésia, outra parte é da Malásia e ainda há um país-enclave, Brunei.
A história dos gatos paraquedistas começou com outro animal: mosquitos transmissores de malária. Uma epidemia da doença atingiu a ilha na década de 1950. Para combatê-la, a recém-fundada Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendava a aplicação de pesticidas para envenenar os insetos. A medida foi aplicada em muitos lugares do mundo, e, em Bornéu, os efeitos pareciam ótimos.
- Relacionadas
A prevalência de mosquitos contaminados com o vírus da malária caiu de 35,6% para 1,6% depois de aplicações dos pesticidas DDT (diclorodifeniltricloroetano) e BHC (hexacloreto de benzeno) nas casas de Bornéu entre 1953 e 1955. A pulverização ocorreu somente dentro das residências – que, em cada vilarejo, consistiam em uma longhouse, grande construção com telhado de palha que podia abrigar até cem famílias.
Os pesticidas deixavam um pózinho pranco nas superfícies em que eram aplicados. Mesmo assim, a população estava satisfeita com a medida. As autoridades afirmavam que “a erradicação completa poderia ser esperada em um futuro próximo”.
Mas o otimismo daria lugar ao desespero: os telhados das longhouses estavam caindo, e os casos de outras doenças, aumentando. Vamos entender o passo a passo dos desastres e desequilíbrios ecológicos que estavam acontecendo.
Além dos mosquitos, o pesticida envenenou as baratas e outros pequenos insetos, que não morriam imediatamente, mas ficavam meio tontos. Assim, se tornavam presas fáceis para lagartixas.
Nessa hora, é preciso entender o fenômeno da biomagnificação, quando substâncias se acumulam na cadeia alimentar. Pense que cada barata tinha um pouquinho de veneno em seu organismo – depois de uma vida comendo incontáveis baratas, cada lagartixa já tinha bastante veneno em seu corpo.
O predador natural das lagartixas eram os gatos. Além de lamber o pesticida que ficava nas superfícies, os gatos também comiam as lagartixas – e iam acumulando cada vez mais veneno. Logo, foram morrendo. Sem eles, a população de ratos explodiu, aumentando os casos de doenças ligadas a falta de higiene, como tifo e peste bubônica.
Mas e os telhados caindo? Os pesticidas atingiram também uma espécie de vespa que era parasita de lagartas. Sem os parasitas, a população de lagartas aumentou até 50%. Não havia comida para todas elas, que começaram, então, a comer a palha dos telhados.
A população de ratos também ameaçava as plantações, e a situação começou a ficar insustentável. Assim, o Império Britânico finalmente resolveu agir. A principal cidade afetada era Sarawak, onde hoje fica Kuching, na Malásia. A cidade fica em uma região montanhosa no meio de uma ilha (pensa em um acesso complicado). Já havia muito tempo que a FAR entregava encomendas por avião – e não seria diferente com os gatos.
No dia 17 de março de 1960, os 23 felinos foram lançados de uma altura de 122 metros, dentro de cestas. Todos sobreviveram e, um mês depois, o governo local avisou: “Obrigado pelos ratos. Não há mais problemas com ratos e camundongos”.
O caso virou uma anedota clássica quando se fala na complexidade de interferir em ecossistemas. E está longe de ser a única: nos anos 1990, por exemplo, a introdução de um novo tipo de anti inflamatório veterinário para gado quase extinguiu a população de abutres da Índia, matou meio milhão de indianos e gerou US$ 70 bilhões em prejuízo por ano.
Por incrível que pareça, os gatos de Bornéu não foram os primeiros felinos a serem transportados pela FAR em casos de infestação de pragas. Em dezembro de 1953, a RAF soltou nos ares um gato “enviado em uma caixa especialmente acolchoada junto com as rações” em Perak, na Malásia.
Existem muitos outros casos em que a pulverização de DDT em ambientes internos causou desastres ecológicos – muitos deles com a redução da população de gatos, como em Bornéu. O drama era tão sério que em Oaxaca, no México, os dedetizadores eram conhecidos como los matagatos.
Na Guiana Britânica (atual Guiana), a aplicação de pesticidas extinguiu o mosquito Anopheles darlingi, responsável pela transmissão da malária entre 1946 e 1950. Duas outras espécies da mesma família, A. aquasalis e A. albitarsis, ficaram vivas, mas ninguém se preocupou pois elas picam principalmente animais.
Com a queda na taxa de malária, a população aumentou em 68% – o que exigiu um um aumento correspondente na terra usada para o cultivo de arroz, tornando menos terra disponível para o gado. A diminuição do gado deixou os A. aquasalis sobreviventes passando fome, e eles partiram para outro alvo abundante: os humanos. E os casos de malária subiram novamente.
As histórias são inúmeras, e todas provam algo indiscutível: ecossistemas são coisas muito complicadas. Você pode começar tentando controlar a malária e terminar com gatos paraquedistas. Pelo menos, eles sempre caem em pé.
Cadastro efetuado com sucesso!
Você receberá nossas newsletters pela manhã de segunda a sexta-feira.