Imagine poder desabafar com um personagem de um filme, uma celebridade ou um artista que já morreu? Agora imagine não precisar pagar por isso e ainda ter acesso a esse serviço 24 horas por dia, quando e onde quiser, diretamente da tela do celular. É mais ou menos isso que plataformas como a character.ai estão oferecendo a seus usuários. A partir do uso de Inteligência Artificial, disponibilizam chatbots que escrevem (e falam) de maneira pré-determinada, podendo soar como Abraham Lincoln, Cristiano Ronaldo, um homem apaixonado por você, a cantora Jennie do BLACKPINK e muito mais.
Ao cruzar as linhas entre o real e o imaginário, a plataforma se protege incluindo um aviso em todo chat: “Isso é um chatbot de IA e não uma pessoa real. Trate tudo o que diz como ficção. O que é dito não deve ser considerado um fato ou um conselho.” Ainda assim, um uso específico da ferramenta está preocupante especialistas: o da IA como terapeuta.
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O character.ai, e também o ChatGPT, estão sendo cada vez mais procurados como uma alternativa a psicólogos de carne e osso. Respostas instantâneas, gratuidade e um comportamento programado para não bater de frente com o usuário parecem cativar, sobretudo, os mais jovens, que enxergam um conforto na substituição do contato real pelo digital.
Os efeitos podem ser devastadores. Dependência emocional, superficialidade nas conexões e até mesmo tragédias já foram associadas a esse cenário, levantando uma discussão sobre os limites éticos e práticos do uso da IA no campo da Psicologia.
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Paralelamente, a profissão é apontada por especialistas de mercado como uma das mais resilientes frente à onda de Inteligências Artificiais, se destacando como uma das carreiras insubstituíveis pela máquina. Qual seria, portanto, o equilíbrio entre os dois lados? Seria possível incluir o uso de IA na Psicologia de maneira saudável?
O GUIA DO ESTUDANTE conversou com profissionais da área para entender qual é o cenário atual e os riscos envolvendo a chegada da nova tecnologia.
Busca por conexão emocional
As plataformas de IA estão transformando a maneira como os jovens lidam com sua saúde mental. Isto é um fato. Lilian Vendrame, autora, psicóloga e neuropsicóloga especialista em adolescência, observa que “a interação com chatbots atrai, principalmente, aqueles que experimentam solidão, isolamento ou falta de conexões na vida”. A facilidade de interação e o acesso imediato a conselhos tornam essas ferramentas sedutoras – e em momentos de maior vulnerabilidade, um espaço para desabafar.
“Na sociedade contemporânea em que vivemos, buscamos soluções e respostas imediatas, e um ‘bot’ é muito bom nisso. Ele tem muito a dizer, faz suposições, dá conselhos rapidamente, e isso parece aquietar o coração de quem se sente solitário e em busca de conselhos.”
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Há, no entanto, uma superficialidade e artificialidade nas interações com a IA que é inerente a essa tecnologia. E o que o usuário não percebe é que, em vez de resolver seus problemas, ele pode acabar agravando dificuldades psicológicas ao longo do tempo.
“Na interação entre seres humanos precisamos desenvolver a capacidade de lidar com a frustração de não termos as respostas prontas imediatamente, precisamos tolerar a angústia de lidar com as emoções para que possamos nos autorregular emocionalmente e um bot não consegue nos oferecer isso.”
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A IA como forma rápida de “apoio”
Alguns casos trágicos já evidenciam os riscos de depender de ferramentas de IA para apoio emocional. Lilian menciona um exemplo clínico de um paciente que desenvolveu um vício em pornografia envolvendo uma personagem de IA. Segundo a psicóloga, o jovem buscava na interação com a IA uma forma de preencher lacunas emocionais que não conseguia superar. Ela relata que o paciente havia desenvolvido uma relação amorosa com a IA e que não saía mais de casa – ao mesmo tempo em que se sentia culpado por isso.
“Fomos trabalhando em terapia e percebermos que ele tinha dificuldade de falar com mulheres, nunca tinha tido namorada e era criticado na família por isso, então a solução que encontrou foi a IA”, conta. “Hoje, o paciente está ciente de suas dificuldades e vem trabalhando nelas, e agora conseguiu lidar com o seu apego emocional à IA.”
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A facilidade de se relacionar (amorosamente ou não) com uma IA, que nunca critica ou impõe limites, pode dificultar ainda mais as interações humanas – situação especialmente preocupante em jovens que já enfrentam dificuldades de conexão social. “Vale investigar os motivos que os pacientes estão trazendo por trás da substituição da interação humana por essas plataformas”, afirma Lilian. “Eu, como psicóloga, me perguntaria: o que este comportamento quer dizer sobre essa pessoa?”
Outro episódio emblemático é o de um adolescente que recorreu a uma IA para desabafar sobre pensamentos suicidas. Influenciado de forma inadequada, ele acabou tirando a própria vida. Para Guilherme Silveira, engenheiro de software e pioneiro no uso de IA na educação, “falta um protocolo adequado para prevenir situações como essa”.
Ele defende que o desenvolvimento de tecnologias em contextos de saúde mental precisa ser orientado por especialistas da área. “Psicólogos são os verdadeiros conhecedores das nuances emocionais e precisam criar diretrizes para minimizar os danos”.
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Uso da IA pode ser útil

Quem estuda o avanço das IAs pondera, no entanto, que o papel da Psicologia diante dessas novas tecnologias não deve ser o de rejeitar a inovação, mas sim usá-la estrategicamente. “O futuro da profissão não está em competir com a IA, mas em integrar ferramentas que potencializem o trabalho do psicólogo sem comprometer a sua essência”, explica Guilherme, que também é CIO e co-fundador da Start by Alura, que insere IA na educação de crianças e adolescentes.
“Plataformas que ajudam pacientes a monitorar pensamentos e emoções são exemplos positivos de como a tecnologia pode auxiliar”, exemplifica Lilian. Nelas, os pacientes vão descrevendo a maneira como se sentem dia após dia e uma IA cria um relatório periódico que é enviado ao terapeuta. Guilherme destaca ainda outro ponto: o uso de IA para a ampliação do acesso ao conhecimento por parte dos profissionais. “Ferramentas de busca podem facilitar o acesso a artigos científicos, economizando tempo para os profissionais”.
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Mas quando o assunto é o uso da IA no tratamento psicológico, ambos são categóricos: a tecnologia não deve invadir o espaço terapêutico. “O coração da conversa entre psicólogo e paciente é a relação humana. Inserir uma máquina nesse contexto pode transformar a essência da terapia”, reforça Guilherme.
Além disso, o debate acerca da relação entre IA e Psicologia deve ser ampliado, envolvendo não apenas especialistas, mas também pais, educadores e os próprios jovens. “Conscientizar sobre os riscos e os limites das plataformas de IA é fundamental para evitar problemas graves”, afirma Lilian. Ela propõe que escolas e a mídia abordem o tema para reduzir a vulnerabilidade dos jovens frente à nova tecnologia.
A recomendação serve, também, para os próprios psicólogos, que precisam entender as novas dinâmicas trazidas. “A relação com a IA é enviesada e reflete os próprios preconceitos do usuário. Isso exige dos profissionais um olhar ainda mais atento”, conclui Guilherme.
Psicologia resiste
Na visão de especialistas de mercado, a Psicologia, apesar dos avanços cada vez mais impressionantes, como o do character.ia, se manterá firme como uma profissão insubstituível pela máquina. De acordo com o relatório “Future of Jobs”, do Fundo Monetário Internacional, profissões relacionadas à área continuarão tendo crescimento e demanda por parte da sociedade.
Essa blindagem é fácil de explicar: nenhuma IA pode replicar a capacidade de empatia, compaixão e criatividade que apenas um ser humano é capaz de oferecer. Um estudo do Departamento de Psicologia da Universidade de Nebraska-Lincoln pontua que cargos focados nestas habilidades, especialmente nas áreas de saúde, educação e terapia, são os menos propensos à automação.
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Ou seja, enquanto a tecnologia deve seguir auxiliando em tarefas operacionais, é no encontro humano que sempre irá residir a verdadeira essência da área.
Aqueles que desejam ingressar na carreira podem ficar tranquilos: o futuro da Psicologia não está em risco – mas, sim, cheio de oportunidades. “A demanda por profissionais que compreendam as complexidades emocionais e criem espaços seguros para seus pacientes continuará crescendo”, conclui Lilian.
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