Tempo Rei, espetáculo que marca a despedida de Gilberto Gil dos palcos, é recheado de momentos que iremos levar pra vida inteira. Num dos meus prediletos, Mestrinho dedilha em sua sanfona os acordes iniciais de Retiros Espirituais, canção que o cantor e compositor baiano registrou em Refazenda, disco de 1975. Gilberto Gil, acomodado num banquinho, assume o violão e canta Se Eu Quiser Falar com Deus, canção que me leva às lágrimas desde que eu a assisti/escutei pela primeira vez num clipe do Fantástico, da Rede Globo.
Destaque do álbum Luar, de 1981, Seu Eu Quiser Falar com Deus tem uma mensagem poderosa, na qual Gil disseca o processo de purificação do ser humano na busca pelo divino. Durante sua execução, o telão exibe imagens de vegetações, como uma alusão de chegar perto de Deus e da natureza.
Ela foi uma das canções do repertório de Gil que jamais ficou de fora da pré-seleção de Tempo Rei. Rafael Dragaud, diretor artístico do espetáculo, Bem e José Gil (filhos de Gilberto, que responderam pela direção musical) e Flora, mulher do cantor, selecionaram o repertório entre mais de 40 criações espalhadas por 58 anos de carreira discográfica (mas a compilação ainda se permite a pequenas surpresas: como A Paz, parceria de Gil e João Donato, que Marisa Monte cantou numa das apresentações no Rio de Janeiro).
O que também me chama atenção em Se Eu Quiser Falar com Deus é que escapou por pouco de ser “estreada” por Gil. Ela foi oferecida inicialmente para Roberto Carlos, que teria discordado da visão do compositor baiano sobre fé – o “tenho de comer o pão/ Que o diabo amassou” seria demasiado forte para alguém que até hoje se recusa a bisar Quero que vá Tudo pro Inferno.
Roberto, aliás, encabeça uma lista de intérpretes que foram a primeira opção dos compositores, recusaram o presente e viram aquela canção ser bem-sucedida em outras vozes. Ele passou As Rosas não Falam, de Cartola (“Elas falam, sim! Eu converso com elas”, teria dito), Certas Coisas, de Lulu Santos e Nelson Motta, e Eternas Ondas, de Zé Ramalho. Esta última, aliás, acabou na voz de Fagner, que tempos depois gravaria Deslizes, outra composição repudiada por Roberto –nesse caso, não foi o único a dizer “não”. Michael Sullivan, autor da canção ao lado de Paulo Massadas, me disse que ela passou de 1984 a 1988 recebendo negativas de vários intérpretes de alta patente da MPB.
Mas o que faz uma canção de sucesso ser recusada? Muitas vezes, um ou outro detalhe da letra. Um empresário de Fábio Jr., por exemplo, teria encasquetado com o verso “…e às vezes chego a te encontrar/ Num gole de cerveja…“, presente na balada sertaneja Desculpe, Mas Eu Vou Chorar, de César Augusto e Gabriel, que encontrou o caminho do sucesso na voz de Leandro & Leonardo (Fábio finalmente se renderia a ela em 1997, seis anos depois do sucesso dos sertanejos). O mesmo Fábio não se comoveu com Sozinho, de Peninha. Ela foi parar num disco de Sandra de Sá, de 1996 e estourou de vez na voz de Caetano Veloso em Prenda Minha (1998).
Angela Ro Ro encrespou com o “Quem sabe eu ainda sou uma garotinha/ Esperando o ônibus da escola”, versos que Cazuza criou para Malandragem, sua composição ao lado de Roberto Frejat. Mas Cássia Eller tomou os versos para si com tanta convicção que conseguimos imaginá-la como a pessoa que se vê diante de uma encruzilhada pessoal (no caso de Cássia, é bem capaz de ser verdade: ela vinha de dois discos que não tiveram sucesso em vendas e o álbum que contém Malandragem seria sua última chance).
Zélia Duncan não teria gostado da versão em português da canção italiana La Mia Storia Tra le Dita, de Gianluca Grignani, um presente de Mariozinho Rocha, então todo poderoso das trilhas sonoras das novelas da Rede Globo. Coube a Ana Carolina criar uma outra versão em português, ao lado do parceiro Dudu Falcão e correr para o abraço –no caso, a aclamação nacional.
Fernando Furtado, ex-empresário do Skank, quis escutar uma canção que Nando Reis deu para o Jota Quest. Embora seja um farejador nato de hits, ele não achou nada demais em versos como “O amor é o calor/ Que aquece a alma.” Pois PJ, baixista do Jota Quest, adicionou um groove inspirado numa canção dos Jacksons, o produtor Liminha encaixou uns “lá lá lá lá iá” e Do Seu Lado virou hit do grupo.
Este fenômeno, claro, não se limita às águas nacionais. Em 1965, o Beatle Paul McCartney sonhou com uma melodia, mas achou que não fazia parte do estilo de seu grupo. Ele a ofereceu então para o cantor romântico Billy J. Kramer, que a achou “melosa demais”. Coube então aos Beatles gravarem Yesterday. Bryan Ferry e Billy Idol torceram o nariz para Don’t You (Forget About Me), tema do filme infanto-juvenil O Clube dos Cinco. Ela acabou sendo porta de entrada do grupo Simple Minds no mercado americano (a exemplo do Jota Quest, aqui também tem um ”lá lá lá lá lá” não previsto que deu charme à canção).
Donna Summer não achou graça em It’s Raining Men, que foi o único hit das Weather Girls; Umbrella foi dada de presente para Britney Spears, que a recusou e a viu estourar nas paradas na interpretação de Rihanna; Michael Jackson não gostou de Rock Your Body, que foi determinante para a estreia solo de Justin Timberlake (aliás, é mais Michael do que muita canções que o popstar posteriormente viria a gravar).
É bem capaz que Seu Eu Quiser Falar com Deus fizesse sucesso na voz de Roberto Carlos ou de qualquer outro intérprete. Elis Regina, por exemplo, tem uma versão dessa música na qual dá características de blues e soul. Mas sempre acreditei que, da mesma maneira que a bola procura o craque dentro de campo, a canção encontra sua voz ideal. Não encontro ninguém que despeje a emoção necessária para interpretar os versos que se assemelham a uma oração, que o cantor e compositor baiano. Dia 26 estarei no Allianz Parque para rever Gilberto Gil. E a exemplo do menino que se emocionou com o videoclipe do Fantástico, certamente não faltarão lágrimas em Se Eu Quiser Falar com Deus.