Texto Rafael Battaglia | Design Caroline Aranha | Edição Bruno Vaiano
A passagem de avião mais cara do mundo custa US$ 66 mil – R$ 380 mil. É uma viagem (só de ida) de Nova York até Abu Dhabi num avião da Etihad Airways, dos Emirados Árabes.
O bilhete dá direito a uma suíte de 40 metros quadrados com cama queen size – não à toa, a acomodação se chama “A Residência”. Ela fica no andar de cima do avião, um Airbus A380, a maior aeronave comercial do mundo. O pacote inclui também um chofer que leva você ao aeroporto e um mordomo (treinado para atender famílias reais) à sua disposição durante o voo.
A suíte da Etihad custa o equivalente a um apartamento. Mas dá para viajar gastando bem mais – basta fretar um avião. O percurso Nova York-Abu Dhabi de jatinho custa entre R$ 1 milhão e R$ 1,6 milhão, dependendo do modelo da aeronave. E olha só que baita negócio: nessa mesma rota, dá para alugar aviões por R$ 1 mi que comportam até 12 passageiros. Faça uma vaquinha e o rolê sairá R$ 90 mil por cabeça. Uma pechincha (rs).
Considerar esses valores na hora de planejar uma viagem é uma realidade bem distante para quem junta milhas, caça promoções de companhias aéreas ou nem sequer tem grana para andar de avião. Mas a verdade é que, apesar dos preços exorbitantes, os jatinhos nunca estiveram tão populares.
Uma pesquisa publicada em novembro do ano passado na Communications Earth and Environment, um periódico científico vinculado à Nature, mostrou que de 2019 a 2023 o número de aeronaves particulares cresceu de 20 mil para 26 mil – um salto de 30%. Do total, quase 90% são aviões a jato, que podem bater os 800 km/h. O restante são modelos com motores turbo-hélice, que voam mais baixo e a uma velocidade menor (500 km/h).
Em 2023, esses aviões realizaram 4,3 milhões de voos – 1,1 milhão a mais que em 2019. Quase metade das viagens eram curtas – menos de 500 quilômetros.
O crescimento dos voos privados não tem a ver com passagens mais baratas. O empurrão veio com a pandemia, que minguou a oferta de voos regulares. Quem pôde bancar um avião só seu, porém, seguiu viajando.
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O maior mercado de jatinhos são os Estados Unidos, com folga: o país concentra quase 70% da frota particular global. O fluxo é intenso entre os seus dois maiores centros urbanos, Nova York e Los Angeles, mas não só: a região de Miami concentra 6% de todas as decolagens privadas do mundo.
O Brasil é o segundo maior mercado da aviação particular, com 3,5% do total de jatos. Por aqui, o setor já estava aquecido antes mesmo da pandemia. Em 2019, a incorporadora de luxo JHSF inaugurou o aeroporto Catarina, o primeiro do país 100% voltado a voos privados. Ele fica em São Roque, a 35 minutos de carro de São Paulo (ou 14 minutos de helicóptero, caso você tenha um). Funciona 24 horas por dia e opera 1.200 voos todo mês.
O glamour dos jatinhos, porém, esconde uma verdade deselegante: essa é a forma de viajar mais nociva ao meio ambiente. Em 2023, 256 mil super-ricos (0,003% da população adulta global), com patrimônio médio de US$ 123 milhões, jogaram na atmosfera 15,6 milhões de toneladas de CO2 com seus voos particulares. É um número 46% maior em relação a 2019 – e quase 3 milhões de toneladas a mais do que toda a mineração brasileira emitiu no ano passado.
É claro: esse é um valor pequeno se comparado ao das companhias aéreas. Os voos particulares correspondem a 2% das emissões de todo o setor da aviação – que, por sua vez, é responsável por entre 3% e 4% das emissões globais. Mas a pegada de carbono per capita chama a atenção: quem usa jatos particulares polui até 14 vezes mais que um passageiro de voo regular – e até 50 vezes mais que um passageiro de trem.
“Uma aeronave particular grande pode emitir mais em uma hora que uma pessoa comum emite em um ano inteiro”, disse em comunicado Stefan Gössling, pesquisador da Universidade de Lineu, na Suécia, e um dos autores do estudo da Nature. Vamos entender como esse mercado exclusivo funciona – e se é possível torná-lo sustentável.
Vou de táxi de jato
No Brasil, só 5% da frota de aeronaves opera voos comerciais (Gol, Latam, Azul, Voepass). Todo o restante está sob o guarda-chuva da chamada “aviação geral”, que também emprega 60% dos pilotos brasileiros.
Esse é um setor que abrange várias atividades (de helicópteros policiais até os aviões que levam serviços a comunidades indígenas remotas). Mas, grosso modo, dá para dividi-lo em dois grandes grupos: o privado e o profissional.
No primeiro estão pessoas e empresas que compram aeronaves para uso próprio, sem a intenção de lucrar com os voos. Jatinhos adquiridos por um banco para transportar seus diretores ou por um ricaço para passar as férias em Ibiza entram nessa categoria.
No segundo, por sua vez, estão as empresas que prestam serviços aéreos. Esse é o grupo mais amplo – inclui, por exemplo, os aviões de pulverização agrícola, as escolas de aviação e os helicópteros que realizam viagens offshore: o vaivém de funcionários de petrolíferas entre plataformas, navios e terra firme.
Dentro da aviação geral profissional existem também os voos aeromédicos, que transportam pacientes hospitalizados. As empresas que atuam nesse meio modificam todo o interior dos aviões. “Vira um quarto de UTI completo, com cama, respirador e monitor cardíaco”, diz Maurício Goldbaum, diretor-presidente da UniAir, especializada nesse serviço.
Voos médicos podem furar as filas de pousos e decolagens em aeroportos. Secretarias de saúde, convênios médicos e até os próprios pacientes podem contratar empresas do ramo, que precisam de uma homologação especial da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).

E há, por fim, as empresas de táxi aéreo, que fretam os seus aviões para terceiros. Aqui, a palavra é flexibilidade. O avião pode decolar a qualquer hora, não é preciso fazer check-in, passar pelo raio-X nem despachar malas. Além disso, as opções de destino são maiores: no Brasil, a aviação regular opera em 176 aeroportos; com os jatinhos, dá para usar os quase quatro mil existentes no País.
Hoje, há 147 empresas de táxi aéreo no Brasil. Todas passam por verificações periódicas da Anac. “Os critérios são de acordo com o volume de operações – quem voa mais é mais fiscalizado”, diz Raul Marinho, diretor técnico da Abag. Nos últimos dez anos, houve 75 acidentes no táxi aéreo brasileiro. Em comparação, a aviação agrícola registrou 426; na privada, cuja fiscalização é menos rígida, foram 726.
Certo, mas como contratar esse serviço? Dá para entrar em contato direto com as empresas ou usar plataformas que fazem o meio de campo. No Brasil, a mais comum é a Flapper, uma “Uber dos jatinhos”: você entra no aplicativo, escolhe a data e o destino da viagem e o sistema te conecta com os aviões disponíveis.
Uma rápida pesquisa para voos entre São Paulo e Rio de Janeiro mostra que fretar um avião custa de R$ 19 mil a R$ 50 mil, dependendo do tamanho da aeronave. Esses valores, é bom ressaltar, são apenas para a ida. Dá para escolher entre dezenas de opções de aeroportos, muito além da ponte aérea Congonhas-Santos Dumont.

Além de fretar aviões, também é possível viajar num voo compartilhado. É mais em conta (a rota Rio-São Paulo cai para R$ 3 mil), mas há menos opções disponíveis. Também é possível achar vagas em empty legs (“pernas vazias”) – jargão que faz referência às viagens de volta sem passageiros, algo comum. “30% dos voos particulares decolam vazios”, diz Paul Malicki, CEO da Flapper.
Em janeiro, a Super acompanhou o embarque da única rota fixa da Flapper: um voo semanal até Angra dos Reis (RJ) saindo do Aeroporto Campo de Marte, na zona norte da cidade de São Paulo. A passagem custa a partir de R$ 1.700. O preço mais camarada é um chamariz para atrair novos clientes para os outros serviços da empresa.
O avião era um Cessna 208 “Caravan”, um turbo-hélice (mais comuns que os jatos no Brasil), da companhia de táxi aéreo Dux. Essa aeronave, desenvolvida nos anos 1980 para a empresa de entregas Fedex, aguenta até uma tonelada de carga.
O abastecimento durou 20 minutos. Enquanto isso, os seis passageiros daquele dia iam chegando. A sala de espera, bem mais tranquila (e confortável) do que a de um aeroporto convencional, tinha bebidas e comidinhas à vontade, mas nada muito extravagante. Os clientes, afinal, chegam na hora do voo. A ideia é passar o menor tempo possível ali.
O avião estava a poucos passos da sala. No caminho pela pista, dá para ver outros jatos e helicópteros estacionados. Muitos helicópteros, diga-se: São Paulo tem uma das maiores frotas do mundo. Uma das rotas mais comuns, aliás, é ir da Faria Lima até o Aeroporto de Guarulhos. Leva menos de dez minutos – e custa a partir de R$ 2,5 mil.
Enquanto os passageiros se acomodavam no interior da aeronave (cujo tamanho lembra o de uma van), conversei com o piloto. “Já transportei muita coisa inusitada nesse tipo de viagem, como vestidos e bolos de noiva”, ele conta. “Mas acho que nada supera a vez que levei a macaca de estimação do Emerson Sheik, aquele jogador de futebol.”
Pedidos exóticos fazem parte do dia a dia. “É comum que pessoas esqueçam bolsas e peçam para o avião voltar só para pegá-las”, diz Malicki. “Algumas coisas, porém, não podemos fazer. Já teve gente alugando avião e pedindo que o amigo pilotasse, ou pior: tentando usar a aeronave para escapar de um mandado de prisão.”
O rolê em Angra, claro, tem fins turísticos. Voos do tipo, porém, são minoria no setor, que funciona majoritariamente para atender viagens de negócios. Não à toa, o vaivém de jatinhos privados e de táxi aéreo também é chamado de aviação executiva. É um mercado que movimenta US$ 20 bilhões no mundo.

Vergonha de voar?
Em 2022, o Aeroporto Catarina recebeu um dos dois jatos particulares de Elon Musk, avaliado em US$ 65 milhões. O bilionário veio ao Brasil para participar de uma reunião com o ex-presidente Jair Bolsonaro em um resort no interior de São Paulo.
Naquele ano, segundo a Bloomberg, o CEO da Tesla fez 171 viagens particulares – algumas com menos de 15 minutos de duração. Na média, foi um voo a cada dois dias, mais do que qualquer outro executivo do Vale do Silício.
Os rolês aéreos de Musk são monitorados de perto desde 2020 pelo programador americano Jack Sweeney, que criou bots nas redes sociais que acompanham os jatos de bilionários, políticos e celebridades. Não é um hack: Sweeney cruza dados públicos (como os sinais ADS-B, emitidos pela maioria das aeronaves para informar posição, altura e velocidade) para montar o roteiro dos super-ricos, de Mark Zuckerberg a Kim Kardashian.
Em 2021, Musk ofereceu US$ 5 mil a Sweeney (que na época ainda estava no colégio) para que ele deletasse a conta @elonjet no Twitter. O empresário também pediu ao então presidente da rede social, Parag Agrawal, que banisse o perfil. Não rolou. Sweeney queria que a conta continuasse no ar e ofereceu algumas contrapropostas: pediu um estágio a Musk e até deu dicas sobre como ele poderia esconder as informações de alguns voos com um software do governo americano.
Nada feito. No final de 2022, Musk comprou o Twitter, renomeu-o para X e derrubou o @elonjet. Além disso, ameaçou processar Sweeney. As redes sociais da Meta (Facebook, Instagram, WhatsApp) seguiram Musk e também bloquearam os perfis do programador – que ainda mantém bots em plataformas como Reddit, Telegram e BlueSky.
Em 2024, Sweeney entrou na mira de outra celebridade: Taylor Swift. Em uma carta, os advogados da cantora disseram que o perfil que monitora seus voos seria uma forma de stalking – e, portanto, uma ameaça à segurança da artista. As viagens de Taylor ficaram em evidência nos últimos anos, sobretudo, graças à sua turnê mundial Eras Tour, a primeira a faturar mais de US$ 1 bilhão.
As reclamações de Elon, Taylor e cia. fazem sentido até certo ponto. A privacidade dos voos particulares pode ajudar a fechar acordos comerciais, diplomáticos – e a fugir de fãs malucos. Mas esse não é o único motivo pelo qual super-ricos tentam se desvencilhar do monitoramento.
Nos últimos anos, muitos deles viraram alvos de flight shame (“vergonha de voar”): críticas que visam desencorajar viagens aéreas e, com isso, diminuir as emissões de carbono. O movimento surgiu na Suécia em 2018 e foi popularizado pela ativista climática Greta Thumberg.
A aviação joga um bilhão de toneladas de CO2 por ano na atmosfera. Se fosse um país, seria o sétimo mais poluente. O flight shame não é para quem viaja pouco, claro. O foco são passageiros frequentes – eles são a minoria, mas poluem muito: 1% da população global é responsável por mais de 50% das emissões da aviação. Os ativistas também criticam o uso cada vez maior de jatos privados em eventos como os Jogos Olímpicos e a COP, a conferência climática da ONU.
Em meio às críticas, Taylor vendeu um de seus jatos em 2024. O francês Bernaud Arnault, dono do império de marcas de luxo LVMH, também fez o mesmo. Mas nem todos embarcaram na onda. No ano passado, Elon Musk dobrou o número de viagens privadas: foram 355, boa parte delas para pedir votos para Donald Trump EUA afora.

Até 2050, a ICAO (Organização da Aviação Civil Internacional) quer que o setor torne-se carbono neutro (ou seja, que as suas emissões se equilibrem com as compensações). Uma das iniciativas já em prática é a compra de créditos de carbono por empresas e donos de aviões; o dinheiro vai para iniciativas sustentáveis, que retiram CO2 da atmosfera.
Só isso, porém, não vai resolver. Será necessário fazer uma série de mudanças estruturais no setor – que vão demorar. “O transporte aéreo, assim como o marítimo, é o que chamamos de hard to abate (“difícil de abater”)”, diz Ana Beatriz Rebouças, pesquisadora do Conselho Internacional de Transporte Limpo. “Ao contrário do transporte rodoviário, as tecnologias de baixo ou zero carbono ainda não estão disponíveis a nível comercial para os aviões.”
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A lentidão é compreensível. Novas tecnologias levam anos, às vezes décadas, para serem incorporadas em larga escala na aviação. É preciso considerar o tempo para testes de segurança, as mudanças na cadeia produtiva e o treinamento dos pilotos. Já há protótipos com aviões elétricos e a hidrogênio, mas ainda longe de ganharem os ares (especialmente em viagens mais longas). Mesmo a substituição do querosene por opções sustentáveis (os SAFs, na sigla em inglês) ainda é tímida – em 2024, 0,3% do combustível usado na aviação era SAF.
Mas existem algumas soluções a curto prazo. Uma delas é tornar os aviões mais eficientes, ou seja, rodar mais com menos combustível. É uma medida já em curso: apesar do aumento total de CO2 da aviação privada, as emissões por quilômetro diminuíram 5%.
Também dá para priorizar voos com turbo-hélices, menos poluentes que os jatos. E há países que estão tentando reduzir a quantidade de viagens curtas na canetada. Em 2023, por exemplo, a França proibiu rotas domésticas de até 2h30 de duração que possam ser feitas de trem.
É claro que essa não é uma medida universal. Em lugares como o Brasil, onde a malha ferroviária é inexistente, não dá para copiar. Mas há algo que todos os países podem fazer: cobrar mais de quem viaja mais.
“Já se discute a ideia de taxar passageiros frequentes, mas ainda não há nenhuma política implementada nesse sentido”, diz Rebouças. No Brasil, a reforma tributária de 2023 prevê a cobrança de IPVA para donos de jatos (e também de iates). Mas cabe aos estados aprovar e implementar a medida (o IPVA é um imposto estadual).
Fazer com que a camada mais rica da sociedade financie as adaptações climáticas é uma conversa que pode revirar o estômago de alguns endinheirados – mas isso precisa acontecer o quanto antes se quisermos evitar uma catástrofe. Seja no mundo da aviação, seja fora dele, a conta do aquecimento global já chegou para todo mundo. E ela precisa ser dividida de maneira justa.
Agradecimento: Viviane Santiago, diretora-executiva da Oxfam Brasil.
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